‘Cangaço Novo’: saiba como o streaming tem ressignificado o Nordeste no audiovisual

Série do Prime Video e 'Guerreiros do Sol', do Globoplay, reforçam a importância de valorizar o consumo do regional de maneira universal

Divulgação
Cena de "Cangaço Novo" com Alice Carvalho e Allan Souza Lima Foto: Divulgação

O Nordeste brasileiro tem sido pauta de diversas discussões nos últimos tempos devido ao aumento de produções culturais na TV, no cinema e no streaming relacionadas a esta região geográfica do país. Apesar de não haver um motivo específico para tal abordagem, não há como negar a existência de um investimento em temáticas do sertão, que trazem rixas de cangaço para os tempos de hoje, e que misturam contextos históricos com costumes do século XXI.

A série “Cangaço Novo”, exibida no Prime Video, com segunda temporada confirmada para 2026, é um exemplo disso. A trama gira em torno de Ubaldo (Allan Souza Lima), um bancário paulistano que, após a morte do pai adotivo, descobre que tem uma herança no sertão cearense e que seu pai biológico era um famoso cangaceiro.

A ideia de trazer para os tempos atuais os embates já conhecidos através da história do cangaço é uma forma de ressignificar a imagem do Nordeste para quem está acostumado a consumir conteúdo produzido apenas na região sudeste do país. “Essa é a força do ‘Cangaço Novo’: tirar a aura ou a imagem formada pelo sudestino em relação à região. É praticamente a maior força da cultura brasileira. E sempre foi, na música, nas artes. A luz ali é muito importante, mas não é um novo acontecimento, é uma coisa que sempre esteve ali”, declara Fábio Mendonça, diretor da série, em entrevista à IstoÉ Gente.

Cena de “Cangaço Novo” – Divulgação

Para o cineasta, a ideia de trazer novas interpretações do que foi – e do que é – o cangaço, abre horizontes para a sociedade.

“É tudo muito interessante, muito rico, lindo, e para a própria região se assistir é muito legal também. Acho que todo mundo está um pouco cansado desse eixo Rio-São Paulo e o Brasil é tão mais colorido, tão mais diverso, tão mais bonito. Estamos nos interessando pelo Brasil de uma maneira mais ampla”.

Outra produção que tem feito sucesso é “Guerreiros do Sol”, novela do Globoplay, livremente inspirada na história de Lampião e Maria Bonita e ambientada no sertão nordestino nas décadas de 1920 e 1930. A trama acompanha a história de amor e resistência do casal Josué (Thomás Aquino) e Rosa (Isadora Cruz), que se unem ao cangaço para lutar contra o autoritarismo dos coronéis. George Moura, autor da série, explica que a temática da trama é diferente de “Cangaço Novo”, no entanto, sua essência caminha para o mesmo objetivo: representatividade da regionalidade sem cair no jocoso.

“‘Guerreiros do Sol’ é uma expressão de banditismo de uma época em que o Estado não ocupava o espaço que era para ele ocupar e que a lei do papel não valia, o que valia era a lei do mais forte. A volta do cangaço é uma maneira de reabordá-lo sem maniqueísmo. Sem contar que não é uma questão regional. Os cangaceiros são como os samurais do Oriente, ou como os bandoleiros europeus da Idade Média”, argumenta o autor, que vai além na sua opinião sobre o que é “regionalidade”.

“Já chegou a hora de entender que isso não existe. O que existe são as temáticas humanas, e elas se apresentam em cortes locais, mas isso não quer dizer que ela não dialogue com o universal”, completa ele, que percebe semelhanças entre “Cangaço Novo” e “Guerreiros do Sol”.

“Primeiro é a eliminação do certo maniqueísmo em que o cangaço foi tratado. Ele foi tratado, num primeiro momento, como os cangaceiros só sendo bandidos cruéis, sem humanidade nenhuma, e depois, um pouco pelo Cinema Novo, com uma certa idealização de que eles eram heróis, roubavam dos ricos para doar aos pobres. E, na verdade, o cangaço não é nenhuma dessas duas coisas de forma isolada.”

Guerreiros do Sol – Feira em Ponte Nova, em cena Josué (Thomás Aquino) e Rosa (Isadora Cruz) – Divulgação/TV Globo

“Brasil Profundo”

A ideia da quebra de estereótipos relacionados ao Norte e Nordeste do Brasil não é recente. Estudiosos buscam a igualdade de representatividade de todas as regiões do país, justamente pelo fato de o país concentrar a distribuição de verba de investimentos em educação e cultura no eixo Rio-São Paulo. A socióloga Maria Immacolata Vassallo de Lopes*, formada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Centro de Estudos de Telenovela da USP (CETVN-USP), defende o conceito de “Brasil Profundo” – a transformação da realidade de um lugar através do imaginário de quem assiste.

“O lugar pode carregar pobreza, exploração, problema na terra, mas vem o ‘Cangaço Novo’, no passado vinha as obras de Euclides da Cunha como ‘Vidas Secas’, o Glauber Rocha com ‘Deus e Diabo na Terra do Sol’, e tantos outros com temática do sertão, e transformam a percepção disso. Esses filmes e séries entram no imaginário como marcas e se consolidam na literatura com a temática dos opostos entre sertão e o litoral. O sertão é visto como um lugar que tem problemas de atraso, e o litoral como um lugar a se buscar, tornando híbridos filmes e séries que abordam tais temáticas”, analisa.

George Moura ressalta também o comprometimento na sua produção de fugir dos estereótipos sem perder a essência da cultura nordestina. “Uma preocupação que a gente teve foi exatamente tratar dessa complexidade e evitar os clichês. Por exemplo, o primeiro clichê do cangaceiro é que ele é uma pessoa sempre enfezada, raivosa, mal encarada. E a gente trouxe humanidade para o cangaceiro. E uma das maneiras de trazer isso foi na prosódia, colocando os diálogos como embocadura de apoio regional, mas também com um desejo de que esse regional seja compreendido pelo Brasil e pelo mundo e também”, reforça o autor, que na última semana ganhou o prêmio internacional Rose d’Or Awards de Melhor Telenovela.

Nordestern

Maria Immacolata aborda também o conceito “Nordestern” em “Cangaço Novo” e “Guerreiros do Sol”. Trata-se de um gênero cinematográfico brasileiro misturado ao faroeste americano (“western”) e ao cangaço nordestino, que cria histórias de aventura, violência e heroísmo no sertão. “É um rural moderno, na narração, na visualidade, mas mantém violência, misticismo, mandantes locais corruptos, o tratamento complexo de personagens, eles não são unidimensionais”, aponta a socióloga, reforçando a importância da representatividade ser tratada como universal.

“Uma coisa feita no sul ou sudeste é vista como nacional, e não regional. Mas o que é do Norte e Nordeste é regional? A gente tem que cultivar a regionalidade, que é onde a identidade fica a pé. E que as identidades podem andar e podem se misturar”.

Fábio Mendonça pontua ainda os aspectos que buscou para compor uma série com elementos que estão fora de sua bolha de convívio. “Eu sou sudestino, fui aberto e muito atento ao que eu poderia receber, ao que eu poderia ter de ensinamento das pessoas e do lugar. Essa é a chave, fui incorporando tudo da relação com a terra, com a comida, as formas de vestir, de falar, as brincadeiras, as intervenções que aconteceram no roteiro por parte do elenco e por parte da equipe local. Acho que tudo isso foi fundamental. E ficar muito aberto, muito mais receptivo.”

Autor de grandes produções televisivas, como “O Canto da Sereia”, “Onde Nascer os Fortes” e “Amores Roubados”, George Moura conta o que pretende deixar de legado para a cultura brasileira com as temáticas que aborda em seus trabalhos.

“Eu tento iluminar o amor por ser brasileiro. E aí me remeto ao manifesto antropofágico do Oswald de Andrade, quando ele dizia que a gente precisa deglutir tudo que é estrangeiro pela ótica da nossa cultura e gerar uma coisa que nem é estrangeira, nem local. Ela é brasileira. E o Brasil é exatamente isso. Cada história que busco contar é a declaração de amor a um país que tem uma cultura tão rica, tão ampla, que deveria nos orgulhar acima de todas as culturas. E o que vejo, muitas vezes, é uma certa servidão e um certo macaqueamento da cultura norte-americana, ainda muito hegemônica”, lamenta.

Referências Bibliográficas

*Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo; Mestrado e Doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo; Pós-Doutorado na Universidade de Florença, Itália. Professora titular sênior da Escola de Comunicações e Artes da USP. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Epistemologia da Comunicação, Teoria da Comunicação e Metodologia da Pesquisa em Comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas: campo da comunicação, metodologia da comunicação, estudos de recepção, ficção televisiva, streaming. Coordena o Centro de Estudos de Telenovela da USP (CETVN-USP) e o Centro de Estudos do Campo da Comunicação da USP (CECOM-USP).