Para médicas ouvidas pela IstoÉ, a decisão da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) de obrigar as farmácias a reterem as receitas médicas para a venda das “canetas de emagrecimento” é uma medida efetiva para conter o consumo irresponsável e reverter um quadro de banalização do uso de medicamentos como Ozempic, Saxenda e Wegovy para o emagrecimento.
+Entenda o que muda com a nova regra
Cenário de excessos
Na avaliação de Giovana de Paula, clínica geral da Santa Casa de Misericórdia de Chavantes, a norma aprovada pela Anvisa responde à “banalização” do tratamento com as canetas, que são recomendadas por profissionais para tratamentos contra a diabetes tipo 2, o sobrepeso associado a comorbidades e a compulsão alimentar.
Para a médica, “facilidade do acesso, alta visibilidade nas redes sociais e busca por soluções rápidas para o emagrecimento” contribuíram para esse cenário. “Há uma corresponsabilidade dos profissionais de saúde, especialmente quando há prescrição sem avaliação criteriosa ou acompanhamento devido”, disse à IstoÉ.
A médica nutróloga Fernanda Vasconcelos, fundadora do Instituto Qualitté, foi na mesma linha. “Os medicamentos chegaram a ser comercializados em espaços de estética, sem a indicação de profissionais. Tratamentos sérios foram vendidos como ‘atalhos’ para o emagrecimento”, disse.
Segundo dados divulgados pelo jornal Valor Econômico, a Novo Nordisk, responsável pela distribuição de medicamentos como Ozempic, Wegovy e Saxenda no Brasil, teve uma receita de R$ 3,7 bilhões durante o ano de 2023 — um crescimento de 52% em relação ao ano anterior –, tendo as canetas como principais fontes de renda.
Em nota publicada após a decisão da Anvisa, a empresa reiterou que a “segurança e eficácia” de seus produtos foi mundialmente comprovada. A Novo Nordisk disse “compartilhar das mesmas preocupações da Anvisa quanto ao uso irregular de medicamentos e fora de indicação em bula”, ter a segurança do paciente como principal compromisso e se comprometer com “campanhas de conscientização, ações de educação [quanto à automedicação e uso off-label] e denunciando casos de falsificação” das canetas.
Consequências negativas
Quatro dos 12 medicamentos incluídos na nova norma têm indicação para o combate ao sobrepeso, razão que os popularizou como “canetas emagrecedoras” entre os consumidores. “O objetivo é auxiliar na redução de peso quando as medidas tradicionais, como dieta e exercício, não foram suficientes isoladamente“, disse Giovana de Paula.
Com isso em vista, Gabriela Cilla, gastróloga e nutricionista clínica, funcional e esportiva da Clínica NutriCilla, ressalta que a busca por repostas imediatas faz com que muitas pessoas adotem as canetas como recurso único de emagrecimento. A especialista diz que o uso excessivo, além de perigoso, “não necessariamente é um tratamento eficiente para a perda de peso”, já que ofusca a importância de outras ações como reeducação alimentar, atividade física e regulação do sono.
Sem o acompanhamento médico devido e utilizado como instrumento isolado no tratamento, os medicamentos passaram a estar comumente associados a distúrbios gastrointestinais, náuseas, vômitos, diarreia e constipação. “Além disso, há relatos de pancreatite, cálculos biliares e, em alguns casos, alterações no padrão alimentar e psicológico, como distorção da imagem corporal ou relação disfuncional com a comida”, acrescentou a clínica geral.
“O uso sem orientação ainda pode levar à perda de massa magra, desnutrição proteica e até distorções na relação com a alimentação”, acrescentou Vasconcelos. “O tratamento da obesidade e do sobrepeso é multifatorial e deve ser individualizado. Existem outras medicações orais, terapias comportamentais, acompanhamento nutricional, prática regular de atividade física e, em casos mais graves, a cirurgia bariátrica”, concluiu.
Mecanismo de freio
Para a nutróloga, a decisão da Anvisa gera uma barreira importante para o consumo das canetas emagrecedoras. “A retenção da receita exige um acompanhamento contínuo dos pacientes, o que favorece uma abordagem mais segura e orientada. Desencoraja a automedicação e o uso sem prescrição”, afirmou.
Porém, na visão de Gabriela, apesar da medida ajudar na moderação da compra de canetas, o público não necessariamente deixará de comercializá-las. “Ter a retenção acaba inibindo um pouco a compra, mas não significa que as pessoas deixarão de comprar”.
Na prática, consumidores e comerciantes serão submetidos à regra que já vale para os antibióticos: uma das vias da receita é retida na farmácia e enviada à agência para inclusão no sistema de acompanhamento de produtos controlados. Esse processo “permite melhor rastreamento e controle por parte das farmácias e autoridades sanitárias”, disse Giovana de Paula.
A atualização da norma será publicada na próxima semana, segundo informou a coordenação de imprensa da Anvisa à IstoÉ. A partir da publicação, serão 60 dias para a regra entrar em vigor nos locais de venda.