Em São Paulo, mortes em confrontos caíram a zero em batalhões onde medida foi implantada. Especialistas elogiam iniciativa, mas destacam que somente acoplar câmeras aos uniformes não basta para mudar atitude da polícia.O Brasil registrou, em 2020, o maior patamar de letalidade policial já observado desde 2013, quando o Fórum Brasileiro de Segurança Pública começou a monitorar o indicador. Os agentes de segurança pública são responsáveis por 12,8% do total de mortes violentas no país. Em uma tentativa de mudar esse cenário, a Polícia Militar de São Paulo (PMESP) implementou recentemente o uso de câmeras nas fardas de 3 mil dos 85 mil agentes da tropa.
No mês de junho, quando a iniciativa Olho Vivo teve início, houve queda de 54% nas mortes por intervenção policial, em comparação com o mês anterior. Nenhuma morte foi registrada nos 18 batalhões que estão usando câmeras. Os resultados iniciais do projeto sinalizam uma alta eficácia da medida no controle da ação policial. Entretanto, experiências internacionais demonstram que o impacto da utilização de câmeras nos uniformes está condicionado a uma série de fatores.
A decisão de equipar a PM com as chamadas bodycams foi anunciada pelo governador de São Paulo, João Doria, em meio a uma crise. Na véspera, filmagens de uma abordagem violenta conduzida por agentes paulistas foram veiculadas em rede nacional. As imagens exibiam um policial pisando sobre o pescoço de uma comerciante, deitada no chão, de forma muito semelhante à abordagem que levou à morte de George Floyd nos Estados Unidos e gerou uma onda de protestos global.
Eleito em 2018 com um discurso conservador na segurança pública, Doria tem buscado se afastar do bolsonarismo também nessa área. Há cerca de um ano, a PMESP adotou um programa completo de controle de uso da força e redução da letalidade das ações policiais. A cada vez que ocorre uma morte durante ação policial, o comandante do batalhão é chamado a prestar esclarecimentos no comando central da polícia, e é aberta uma investigação sobre o caso em questão.
Câmeras não bastam
As mudanças implementadas em São Paulo são elogiadas por especialistas. Rafael Alcadipani, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor da Escola de Administração da Fundação Getúlio Vargas (Eaesp/FGV), ressalta a importância de analisar os resultados iniciais do uso de câmeras em São Paulo no bojo da nova abordagem observada na segurança pública paulista. Ele defende a eficácia da medida, desde que se crie a estrutura tecnológica necessária para o processamento do material coletado.
“O volume de imagens gerado por um policial ao longo de sete dias é enorme. É preciso que a polícia consiga ser capaz de analisar essas imagens e, quando identificar deslizes, gerar a sanção devida. Caso contrário, no médio prazo, a utilização dessas câmeras vai cair em falta de credibilidade por parte dos policiais”, pondera.
A socióloga Silvia Ramos, coordenadora da Rede de Observatórios de Segurança, acredita que a utilização de câmeras nos uniformes dos agentes pode ser altamente eficaz no controle da atividade policial, desde que acompanhadas por planos consistentes de redução da violência policial.
“Nós não temos a ingenuidade de pensar que as câmeras corporais, sozinhas, vão mudar a atitude da polícia”, diz a pesquisadora. “Hoje, é difícil termos acesso até aos números da violência letal, crimes que são obrigatoriamente registrados na polícia. Imagine como seria com as imagens das câmeras dos policiais em situações questionáveis ou duvidosas.”
A experiência internacional
Em países como EUA e Reino Unido, onde a instalação de câmeras nos uniformes policiais vem sendo adotada, a iniciativa também foi motivada por casos emblemáticos de arbítrio. Em dezembro de 2014, o então presidente americano, Barack Obama, destinou 263 milhões de dólares para ajudar os estados na aquisição dos equipamentos. A medida foi tomada logo após o assassinato do jovem Michael Brown, de 18 anos, durante uma abordagem policial na cidade de Fergunson.
Um relatório publicado no ano passado pela National Police Foundation apresentou um balanço do uso das bodycams nos EUA após dez anos das experiências iniciais. Embora a avaliação individual de certos casos apontem resultados expressivos no controle do uso da força, por exemplo, não é possível estabelecer tendências conclusivas, segundo o estudo. Há locais onde a instalação de câmeras não trouxe qualquer modificação dos indicadores.
No Reino Unido, por sua vez, a implementação da medida levou ao surgimento de novos debates. Um tema central é o armazenamento dos dados: por quanto tempo devem ser mantidos, a fim de garantir seu uso e ao mesmo tempo a privacidade dos agentes? Os custos de manutenção dos bancos de dados e o gerenciamento dos mesmos por empresas privadas também geram controvérsias na avaliação da iniciativa, cujos resultados não apresentam um padrão linear.
Desvio de propósito?
Ao longo da implementação do uso de câmeras em uniformes policiais, o real propósito da iniciativa também passou a ser cada vez mais questionado. Um estudo publicado em 2016 pelo Centro de Políticas Criminais Baseadas em Evidências da Universidade George Mason, dos EUA, mostrou que as imagens captadas pelas bodycams foram utilizadas por procuradores para processar cidadãos privados em 92,6% dos casos. Em apenas 8,3% o material coletado serviu a investigações contra policiais.
O início da utilização de câmeras pela PM de São Paulo tem motivado preocupações nessa direção. A ONG Artigo 19, que atua na defesa da liberdade de expressão e do acesso à informação em diferentes países, sustenta que há um maior risco de os cidadãos serem criminalizados do que protegidos por esse instrumento. “A tecnologia nunca é neutra”, alertou recentemente a diretora-executiva da organização, Denise Dora.
Quando apresentou o programa Olho Vivo, o governador João Doria afirmou que o programa não tinha como objetivo reduzir a letalidade policial, pois seriam “poucos os policiais que cometem excessos”. A finalidade, segundo o tucano, seria “auxiliar nas provas das ações policiais e, com isso, preservar a maioria da corporação”.
Em junho, o governador do Rio, Claudio Castro (PL), sancionou um projeto de lei que determina a implementação de câmeras de vídeo e áudio em uniformes e aeronaves policiais. Castro, no entanto, vetou os trechos que estabeleciam o prazo de dois anos para que 50% das viaturas, aeronaves e uniformes fossem equipados.