Após 30 anos de tentativas frustradas, a Câmara dos Deputados aprovou, em votação histórica, o texto final da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da reforma tributária. É a primeira grande mudança no sistema de tributos desde o fim da ditadura militar no País.

A última reforma tributária dessa magnitude ocorreu há 60 anos, quando foram criados o ICM e o ISS, tributos cobrados sobre mercadorias e serviços, considerados inovadores à época.

O texto foi aprovado em primeiro turno por 371 votos a favor, 12 contrários e 3 abstenções – eram necessários 308, por ser uma PEC. Os deputados analisam agora os destaques – sugestões de mudanças no texto. Para ser promulgada pelo presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), a reforma terá ainda de passar por mais uma votação em segundo turno.

A etapa final de votação da proposta pelos deputados altera em caráter definitivo mudanças introduzidas no texto pelos senadores. A votação desta sexta-feira ocorre num plenário esvaziado, depois que o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), autorizou que os deputados votassem à distância para garantir a aprovação. Isso após uma série de acordos de última hora, que envolveram a derrubada de vetos do presidente Lula.

Câmara aprova em 1º turno maior reforma tributária desde a ditadura militar
Câmara aprova em 1º turno maior reforma tributária desde a ditadura militar (Crédito:Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados/www.camara.leg.br)

“Nós conseguimos vencer o que parecia impossível, que era aprovar uma reforma no Brasil no sistema de tributação. Foi a persistência de quem adotou esse tema com um sentimento de Brasil”, afirmou o relator da reforma na Câmara, deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), visivelmente emocionado, após a aprovação da PEC em primeiro turno.

Lira foi um dos principais patrocinadores da aprovação da reforma, após ter ajudado a enterrar, durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, o avanço da PEC em razão de disputas internas. Bolsonaro não deu apoio à proposta.

No governo Lula, a bandeira da reforma foi encampada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que criou uma secretaria extraordinária comandada pelo economista Bernard Appy para negociar tecnicamente o texto.

O presidente Lula, porém, teve uma participação discreta, com poucos falas públicas em defesa da PEC. A estratégia de Haddad e lideranças do Congresso foi carimbar a reforma com uma proposta de “pauta País, e não de governo”.

Nos governos anteriores, inclusive do PT, não houve ambiente e nem vontade política para aprovar a reforma. Haddad teve de ceder e abrir o caixa do Tesouro Nacional para bancar quatro fundos que serão criados para repassar recursos a Estados e municípios, com impacto no Orçamento e sem previsão de uma fonte de financiamento. Após a aprovação em primeiro turno, o ministro disse que se tratava de um “dia importante para o Brasil”.

Desde a primeira votação na Câmara, foram cinco meses de uma tramitação marcada por embates. De um lado, lobbies de setores e atividades que buscaram alíquota reduzida e tratamento diferenciado; de outro, a disputa entre Estados ricos e pobres por mais recursos e pela prorrogação de incentivos fiscais.

Entre eles, está a extensão até 2032 de benefícios concedidos pelos Estados do Nordeste e Centro-Oeste para montadoras. Na reta final da votação, a prorrogação desses benefícios também provocou um racha na indústria automobilística instalada no Brasil.

IVA: o novo imposto

A reforma institui o Imposto sobre Valor Agregado (IVA) dual: um do governo federal e outro de Estados e municípios. O novo modelo de tributo tem por princípio a não cumulatividade plena, ou seja, impede a chamada “tributação em cascata”, que hoje onera consumidores e empresas.

“Finalmente, o cidadão vai saber quanto paga de imposto no Brasil. As empresas vão também ter mais segurança e simplicidade para pagar seus tributos, podendo gastar com o que realmente importa, com inovação e outros investimentos”, disse a tributarista e professora do Insper Vanessa Rahal Canado, que participou junto com Appy do proposta que serviu de embrião da PEC 45.

A atual reforma tributária começou a ser discutida no Congresso em 2019, quando o então presidente da Câmara Rodrigo Maia estimulou o deputado Baleia Rossi (MDB-SP) a apresentar a proposta que ganhou o número de PEC 45. Nesta sexta, os dois conversavam nos bastidores da votação.

“Depois de 35 anos, desde a Constituinte, é o projeto mais importante para o futuro do País. Podemos ter o resultado que tivemos com o Plano Real, não vai resolver todos os problemas, mas vai garantir crescimento sustentável da nossa economia”, afirmou Baleia.

Apesar das exceções inseridas ao longo da tramitação e que não faziam parte do projeto original, ele diz que a espinha dorsal foi mantida. “Foi o possível politicamente”, disse.

A proposta também desonera os investimentos e promete acabar com a chamada guerra fiscal entre os Estados, uma anomalia brasileira. A expectativa é de que o Brasil entre num novo ciclo de aumento da produtividade, investimento e do Produto Interno Bruto (PIB). A mudança, no entanto, não será de uma hora para outra, porque a transição da reforma será longa.

O coordenador do grupo de trabalho da reforma na Câmara, deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), avaliou que a proposta criará um ecossistema para atração de investimentos em novas bases. “Fizemos a mais importante reforma estruturante para economia brasileira. Vai conectar o Brasil com o sistema tributário internacional e permitir ao Brasil voltar a ser competitivo com os importados”, disse.

Alíquota

O potencial de crescimento é considerado difícil de mensurar, mas a aposta é de que o avanço de se unificar a base de tributação entre bens e serviços será muito maior do que o prejuízo advindo das exceções aprovadas pelo Congresso e que podem levar a alíquota a um patamar da ordem de 27% – entre os maiores IVAs do mundo.

A depender da regulamentação dos regimes com tratamento específico, técnicos do governo avaliam que a alíquota pode cair para 26%.

A PEC cria três novos tributos: o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), substituindo o ICMS dos Estados e o ISS dos municípios; a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), que substitui PIS, Cofins e o IPI, que são federais; e o Imposto Seletivo, que incidirá sobre produtos danosos à saúde e ao meio ambiente.

Os novos impostos começam a valer em 2026, com um período de teste, e passam a ter vigência integral em 2033. A proposta também muda a tributação da origem, onde a mercadoria é produzida, para o destino, onde é consumida.

“A principal mudança, a fusão do ICMS e do ISS, é de uma clareza meridiana sobre o quanto simplifica. São 5.700 legislações municipais e 27 estaduais. Agora, será apenas uma lei complementar. Já o número de exceções a gente conta nos dedos da mão”, afirma Nelson Machado, diretor do CCif (Centro de Cidadania Fiscal), onde a atual reforma começou a ser elaborada.

“A última grande transformação tributária foi a implantação do ICM e do ISS, em 1966. De lá para cá, nunca tivemos uma reforma. O que houve foram puxadinhos, como a mudança no PIS/Cofins em 2003. É uma mudança de porte”, diz Machado.

Novo texto

Na nova passagem da proposta pela Câmara, os deputados retiraram algumas das mudanças incluídas pelo Senado, após acordo costurado entre os relatores da Câmara, Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), e do Senado Eduardo Braga (MDB-AM), com os respectivos presidentes das Casas.

Na Câmara, deputados avaliaram que Braga piorou o texto e trabalharam para retirar dispositivos introduzidos pelos senadores. Para evitar um impasse, que poderia impedir a promulgação da emenda ainda neste ano, com a contagem dos prazos, a desidratação do texto acabou ficando menor do que a desejada pelos deputados.

Em seu último texto, Ribeiro derrubou a criação de uma Cide (Contribuição de Intervenção sobre Domínio Econômico) para tributar produtos concorrentes aos produzidos na Zona Franca de Manaus, que dará lugar a um IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) preservado apenas para essa finalidade.

Ribeiro também retirou da proposta a cesta básica estendida, com produtos que não seriam atendidos com a isenção total de impostos prevista na cesta nacional, mais restrita. A estendida seria contemplada com alíquota reduzida, ou seja, com desconto de 60% sobre alíquota padrão do IVA.

Ele também retirou do regime específico – que terá regras próprias de tributação – cinco setores que haviam sido inseridos no Senado: saneamento, concessões rodoviárias, empresas de aviação, de telecomunicações, microgeradores de energia elétrica e o setor da reciclagem.

Ribeiro, por outro lado, decidiu manter uma tributação menor para profissionais liberais, como advogados e médicos, com desconto de 30% sobre a alíquota-padrão do IVA. O líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), disse que essa foi a “única demanda” do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

O relator também retirou o trecho que permitia a equiparação salarial de auditores fiscais estaduais com a remuneração de ministros do STF (Supremo Tribunal Federal), como mostrou o Estadão. O ponto era considerado um “jabuti” por Ribeiro na reforma. Na votação dos destaques, no entanto, a equiparação salarial foi reinserida pelos deputados em meio a forte lobby dos auditores.

Mudança

No início do ano, os opositores da reforma, como o setor de serviços, apostavam na repetição do que ocorreu nos últimos anos: grandes mobilizações com o discurso de aumento da carga tributária, que barraram as tentativas de mudança no sistema.

Com a avanço das negociações a partir do primeiro semestre, contudo, esses setores entraram nas negociações para ficar com uma alíquota menor, diante da constatação de que a proposta seria aprovada.

O amplo leque de exceções, costurado sob forte pressões empresariais, ficou na contramão de um dos pilares da reforma pretendida: uniformidade de alíquota e o menor número de regimes diferenciados e especiais. Se não houvesse nenhuma exceção, ou seja, se nenhum setor tivesse tratamento diferenciado, a alíquota padrão do IVA ficaria entre 20,7% e 22,2%, segundo cálculos da equipe econômica.

Para Sergio Gobetti, responsável por uma série de estudos que embasaram as negociações da proposta, a reforma aprovada pode estar longe do ideal dos livros-textos atuais; mas, ainda assim, representa um enorme avanço, não só na redução das ineficiências económicas do modelo atual, mas também na promoção de maior justiça tributária na distribuição de receitas dentro da federação.

“O Brasil pecou por ser excessivamente conservador nas décadas seguintes, ao retardar as reformas necessárias. Felizmente, estamos agora virando uma importante página na nossa história”, avaliou Gobetti, que é economista do Ipea.

“Será a maior reforma tributária do consumo desde os anos 60?, destacou o professor Isaias Coelho, coordenador do Núcleo de Estudos Fiscais da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Coelho ressaltou que a introdução do IVA transfere o imposto do investimento e da produção para o consumo, da origem (local de produção) para o destino (local de consumo), tornando o País mais competitivo e trazendo muitos benefícios econômicos, que se revelarão ao longo do tempo.