O fluxo sem precedentes de pessoas tentando chegar, partindo do Marrocos, ao enclave espanhol de Ceuta, no norte da África, e a devolução de milhares delas terminaram nestas quarta e quinta-feiras em confrontos violentos no lado marroquino da fronteira.
Esta manhã, a situação era calma na zona fronteiriça. Guardada pelas forças marroquinas, a cidade de Fnideq (nome árabe para Castillejos) estava deserta, assim como a vizinha praia espanhola de Tarajal, onde ainda havia soldados e veículos blindados.
Desde segunda-feira (17), 8.000 migrantes conseguiram entrar em Ceuta, graças ao relaxamento do controle do lado marroquino, no contexto de uma disputa diplomática entre Rabat e Madri pela assistência médica prestada pela Espanha ao líder separatista do Saara Ocidental – território que Marrocos considera como seu.
Destes, 5.600 já foram devolvidos ao Marrocos, segundo as autoridades espanholas, que, nesta quinta-feira (20), elevaram ainda mais o tom, denunciando uma “agressão” e uma “chantagem” por parte de Rabat.
Muitos dos que foram devolvidos esperam tentar novamente a travessia, se o controle migratório voltar a ser relaxado.
“Não tenho futuro aqui. Quero trabalhar para ajudar minha família”, disse à AFP Mohamed, que chegou a Fnideq na quarta-feira (19), após uma longa travessia. Este jovem de 17 anos deixou os estudos e a família para tentar entrar na Espanha.
“Algum dia vou tentar a sorte novamente e terei sucesso”, estimou Hassan, outro jovem de 17 anos, que “sonha em morar na Europa”.
– Confrontos no lado marroquino –
Descalços, ou de chinelos, com a roupa suja, ou puída, milhares de pessoas, a maioria jovens, tentaram entrar em Ceuta. Junto com Melilla, este pequeno enclave de 84.000 habitantes constitui a única fronteira terrestre entre a União Europeia e a África.
Nos dias anteriores, os soldados espanhóis usaram gás lacrimogêneo para evitar que se aproximassem da cerca de fronteira. Segundo a imprensa marroquina, haveria vários feridos, mas as autoridades de Rabat não divulgaram um balanço oficial.
Um episódio violento ocorreu em Castillejos nesta madrugada, quando mil jovens marroquinos atiraram pedras nas forças da ordem marroquinas e as obrigaram a recuar. Na sequência, atearem fogo a uma motocicleta.
Também nesta madrugada, em Melilla, cerca de 100 migrantes tentaram, sem sucesso, pular a cerca da fronteira, informou a delegação do governo do enclave, na terceira tentativa semelhante desde terça-feira (18), quando 86 pessoas de um grupo de 300 conseguiram entrar.
A Espanha aumentou a pressão sobre Rabat, um parceiro-chave no controle do fluxo migratório.
“Não é apenas uma agressão às fronteiras espanholas, mas às fronteiras da União Europeia”, denunciou a ministra espanhola da Defesa, Margarita Robles, que acusou o Marrocos de “pôr a vida de menores em risco”, deixando-lhes o caminho livre para nadarem até Ceuta.
Madri recebeu o apoio de autoridades europeias, incluindo o do vice-presidente da Comissão Europeia, Margaritis Schinas. Na quarta-feira, ele advertiu que “a Europa não se deixará intimidar por ninguém”.
– Questão saarauí –
Rabat, que tem sem mantido quase completamente em silêncio sobre este assunto, deu a entender que a crise migratória estava relacionada com a hospitalização na Espanha de Brahim Ghali, o líder do movimento de independência saarauí Frente Polisário, apoiado pela Argélia.
“A Espanha deve saber que o preço de desacreditar o Marrocos é alto. Deve rever sua política, suas relações”, disse o ministro marroquino dos Direitos Humanos, Mustafa Ramid.
A agência oficial de notícias MAP publicou uma série de artigos, afirmando que “o Marrocos é um país soberano” e “não é o gendarme da Europa”.
Segundo um dos artigos, “a UE acaba de entrar na crise entre Madri e Rabat, não para denunciar o acolhimento de um criminoso de guerra em solo europeu, mas para defender a ‘europeidade'” de Ceuta e Melilla, territórios controlados há séculos pela Espanha e reivindicados por Rabat.
A Espanha insiste em que a decisão de receber Ghali é por razões “humanitárias”. Reiterou ainda que não mudou sua posição em relação ao Saara Ocidental, uma ex-colônia espanhola, e que manterá sua neutralidade e respeitará as resoluções das Nações Unidas.
Diante desta crise na fronteira, várias ONGs espanholas e marroquinas criticaram a presença de menores e sua utilização em um “jogo político”, enquanto questionavam, ao mesmo tempo, sua expulsão de volta para o Marrocos.
A Anistia Internacional condenou que os migrantes estejam “sendo usados como peões” neste “jogo político” entre Madri e Rabat. Segundo esta ONG, cerca de 2.000 menores desacompanhados teriam entrado em Ceuta.