Quando tinha mais ou menos quinze anos, por volta de 1959, o adolescente Francisco Buarque de Holanda ouvia de sua mãe e de seu pai, dona Maria Amélia Alvim Buarque de Holanda e o historiador Sérgio Buarque de Holanda, uma pergunta muito comum que os filhos costumam escutar: “Você já anda pensando em que vai ser quando crescer?”. A resposta era pouco esclarecedora e deixava os interlocutores sem ação: “Eu quero dar risada, eu quero rir…” Chico cresceu e tornou-se um dos nomes mais respeitados em todo o mundo, não apenas como músico, mas, também, enquanto letrista e escritor ­­— é detentor do Prêmio Camões, o mais importante do idioma português no campo da literatura. E se tivesse premiação para quem ri das vicissitudes da vida, ele a teria igualmente vencido.

Nem sempre, no entanto, tudo foram flores. Durante a ditadura militar no Brasil, que pareceu eterna entre 1964 e 1985, de tão ruim que se fez, Chico sofreu severa perseguição a ponto de ter de se asilar na Itália. Pobres militares e pobres censores, que já começavam a tesourar muitas de suas letras, pensavam que ele iria se calar e permanecer o bom moço (se é que algum dia o foi) de olhos cor de ardósia.

Na Itália, Chico fez shows, jogou muita bola e trabalhou como motorista de Garrincha, que jogava por lá. O que se quer falar é que Chico riu muito, ainda que asilado e com pouquíssimo dinheiro no bolso. Compôs músicas ­geniais — destaque para ‘Olha Maria’, ‘Mulher vou dizer Quanto te amo’ e ‘Nicanor’ — e deixou a vida seguir.

Cale-se! Chico Buarque não se calou. E riu, e riu…
As atrizes Tônia Carrero, Eva Wilma, Odete Lara, Norma Bengell e Cacilda Becker na Passeata dos Cem Mil, em 1968 (Crédito:1992 Accusoft Inc, All Rights Reserved)

Quando retornou ao Brasil, chutando o balde contra a ditadura a conselho de Vinícius de Moraes e estourando de sucesso com o samba intitulado ‘Apesar de Você’, imediatamente censurado (era o tempo fechado de 1970, com o general Emílio Garrastazu Médici como ditador), Chico praticamente ficou impossibilitado de trabalhar. Tudo que compunha ou escrevia de peças de teatro (Calabar – O Elogio à Traição, por exemplo) era censurado. Ele seguiu a rir e criou um pseudônimo que driblou os censores: Julinho da Adelaide.

“Três de cada quatro composições suas eram censuradas, tornando impossível a montagem de um repertório mínimo para um show ou disco. Chico passou boa parte dos anos 1970 proibido de trabalhar.”
Trecho do livro O que não tem Censura nem Nunca Terá, de Márcio Pinheiro

Palavras trocadas

A guerra que o governo abriu contra o artista é agora retratada no excelente e original livro O que não tem Censura nem Nunca Terá ­— Chico Buarque e a Repressão Artística Durante a Ditadura Militar (editora L&PM), de Márcio Pinheiro.

A primeira letra censurada de Chico Buarque, quando ele tinha 22 anos, foi ‘Tamandaré’. O governo tremeu nas bases diante daquele moço franzino que fumava um Luís XV (sem filtro) atrás do outro.

O nosso dinheiro na época era o Cruzeiro e a nota de menor valor trazia a estampa do Marquês de Tamandaré, herói da Marinha brasileira.

Chico, a partir da desvalorização da cédula, não hesitou: quem quer rir tem de rir, e ele brincou que o velho marquês estava caducando. Deu ruim, é claro ­­— a censura ficou do lado do marquês.

O tempo seguiu seu vaivém, porque correndo “atrás do tempo sempre tempo vem”, e um belo dia Chico compôs a canção ‘Partido Alto’. Em um trecho, ele diz: “na barriga da miséria nasci brasileiro”. Pois bem, estava um dia Chico a almoçar em sua casa, quando tocou o telefone da cozinha. Aliás, Chico estava na cozinha. Ele atendeu e, do outro lado da linha, veio a notícia de que o “brasileiro” da letra não podia sair. Letra totalmente perdida? Não. Valia mudar em cinco minutos.

Chico, o garoto que queria rir na vida, riu. Ele contou nos dedos as sílabas e, de bate-pronto, trocou “brasileiro” por “batuqueiro”. Foi assim o tempo todo, até a redemocratização do Brasil. Aonde Chico ia, uma tesoura da ditadura ia atrás. Hoje, ele, o próprio Chico, ri de tudo isso. Cumpre-se o seu fado.