Durante a pandemia, os herdeiros do cantor Orlando Silva, considerado até hoje uma das melhores vozes masculinas da MPB, deixaram aos cuidados da cantora e compositora Adriana Calcanhotto o violão que havia sido xodó do “cantor das multidões”. Por coincidência, Orlando Silva, o artista predileto de Getúlio Vargas, usava a mesma afinação que ela adota para parte de suas composições há alguns anos. Não satisfeita, Calcanhotto pegou outra relíquia que havia sido deixada com ela: o violão de Nara Leão (esse com afinação regular), e levou ambos para o estúdio. Gravou seu disco mais recente, Errante, valendo-se deles.

Adriana Calcanhotto adquiriu violões de Orlando Silva e Nara Leão e com eles faz shows
ORLANDO SILVA Calcanhotto foi a depositária do violão de Orlando Silva… (Crédito:Divulgação)

Na teoria da artista, a utilização de instrumentos icônicos vai além da qualidade ou afinação. “Cada pessoa amaciará (o instrumento) do seu jeito, pela sua maneira de tocar. Quando toco um deles, percebo que vira uma soma dessas pessoas que o utilizaram”, diz ela. Além da constatação subjetiva de Calcanhotto, existem razões palpáveis que fazem valer a utilização: “Esses violões antigos muitas vezes são feitos com madeiras que não se utilizam mais. Tornam-se diferentes, gostosos de tocar. Além de inspiradores”.

A prática de empréstimo de instrumentos musicais de ícones é comum no meio artístico. Principalmente se os herdeiros não o tocarem, gostam de deixá-los aos cuidados de quem irá cuidar da manutenção e tratá-los com o devido zelo. Foi assim que o vocalista e violonista Helio Flanders, do Vanguart, apareceu na sua cidade natal, Cuiabá, para gravar com a Orquestra do Estado do Mato Grosso, tendo em mãos a guitarra com a qual Raul Seixas posou para a capa do disco Gita. O trabalho que registraram à ocasião não chegou a ser lançado, mas a guitarra ganhou mais linhas de currículo. “Na viagem de São Paulo a Cuiabá, peguei a pior turbulência da vida. Achei de verdade que o avião cairia, e eu só pensava em falar: ‘abre alguma janela aí para salvarmos a guitarra do Raul’”, diz Flanders sobre o instrumento Gibson 335 vermelho de 1970.

Outro que ganhou na loteria dos instrumentos musicais foi o baixista do Planet Hemp, Formigão. Seu caminho cruzou com o de Arnaldo Brandão quando esse precisava levantar um dinheiro para pagar a escola do filho. Formigão levou para casa o contrabaixo Fender Jazz Bass 1968 com que Brandão havia gravado uma das linhas de Odara, de Caetano Veloso. Como o mundo musical dá voltas, Brandão veio a se casar com Kika Seixas, ex-esposa de Raul Seixas. Hoje ele guarda em casa o famoso “Baú do Raul”, com boa parte de uma das memorabílias mais famosas do País. E nas tais voltas que o mundo musical dá, quem se deu bem foi Jão, guitarrista da banda hardcore Ratos de Porão.

Adriana Calcanhotto adquiriu violões de Orlando Silva e Nara Leão e com eles faz shows
NARA LEÃO …e também do violão com o qual Nara compunha (Crédito:Divulgação)

No início dos movimentos punk e de explosão do rock brasileiro, em 1983, o grupo paulistano foi tocar no Circo Voador, no Rio de Janeiro, com outros representantes da vertente musical mais agressiva, como Cólera e Olho Seco. Escalado para abrir a noite estava o trio Paralamas do Sucesso, que dava os primeiros passos. Todos se entenderam na língua da música e uma dúzia de anos depois, quando frequentavam os escritórios e estúdios da MTV brasileira, o líder dos Paralamas, Herbert Vianna, perguntou sobre os amigos punk. “Disseram para ele que a gente não conseguia viver de música. Aí ele mandou recado de que me mandaria uma guitarra de presente”, conta Jão.

Adriana Calcanhotto adquiriu violões de Orlando Silva e Nara Leão e com eles faz shows
BOA MÚSICA Jão tocando a guitarra que foi de Herbert Vianna: raridade que ele leva para a banda Ratos de Porão (Crédito:Divulgação)

Três semanas depois pousou, no mesmo escritório da MTV, uma guitarra Fernandes Les Paul endereçada a Jão. “Foi amor à primeira vista. Desde então ela rodou o mundo comigo, virou minha companheira de vida”, diz ele. Em um desses empréstimos não consignados, quem quase ficou sem uma guitarra clássica foi Lobão, a sua fabulosa Rickenbacker com que havia gravado hits como Décadence Avec Élégance e Vida Bandida.

Dono de editora e selo na virada dos anos 2000, Lobão lançou os gaúchos da Cachorro Grande. Para um dos shows promocionais, ele emprestou o instrumento para o guitarrista Marcelo Gross. Ele gostou tanto da experiência que passou a fugir do chefe para levar o máximo que podia a guitarra aos palcos. Até que se encontraram e Gross foi intimado a chegar em casa e depositar a mesma em um banco de táxi com o endereço de Lobão no destino. O guitarrista não teve o mesmo cuidado que Adriana Calcanhotto confere aos instrumentos que são depositados em sua confiança. “Não os uso na estrada, no palco. Sequer havia pensado em usar no estúdio, mas somente para compor”, diz ela. Se assim continuarem, seguiremos escutando ecos da flauta de Pixinguinha, dos violões de Cartola, Nelson Cavaquinho, Baden Powell e Rafael Rabello, do acordeon de Luiz Gonzaga, do piano de Tom Jobim e de tantos outros sons brasileiros.

Adriana Calcanhotto adquiriu violões de Orlando Silva e Nara Leão e com eles faz shows
RISCO NO AR A guitarra Gibson de Raul Seixas quase foi perdida em acidente de avião: turbulência entre São Paulo e Cuiabá (Crédito:Divulgação)