EM NOME DE DEUS Coalizão Evangélica contra Bolsonaro protesta em Pernambuco, em julho passado

Líderes habilidosos conseguem antever a evolução do eleitorado, mudando sua estratégia para sobreviver politicamente ou se reposicionar em função de novos tempos ou um novo jogo de forças. Não é o caso de Jair Bolsonaro. Ele não foi capaz de ampliar sua base de apoio desde o início do mandato. Manteve um governo direcionado para o seu eleitorado mais fiel e não se preocupou em modular o discurso para abarcar o conjunto da população. Radicalizou suas pautas conservadoras e negacionistas e negligenciou o básico, a gestão do dia a dia e da economia. Com isso, afastou o centro e os moderados. Até os conservadores desembarcam. Sua base de apoio é cada vez mais radical, e menor.

É o que confirmou a última pesquisa Datafolha. A rejeição bateu o recorde de 53%. O instituto registra que sua reprovação disparou 21 pontos percentuais desde dezembro. Nesse período, a aprovação despencou 15 pontos percentuais, de 37% para 22%. Segundo o Ipec, a desaprovação subiu dez pontos percentuais em sete meses, alcançando a marca de 68%. Nada menos que 69% dos entrevistados disseram que não confiam no chefe do Executivo, alta de sete pontos percentuais em relação a fevereiro.

DE ALIDADOS A CRÍTICOS Vem pra Rua agora luta pelo impeachment, mas acha que manifestações contra Bolsonaro podem fazer o jogo de Lula (Crédito:Pilar Olivares)

O grupo de apoio do presidente está se estreitando. Aqueles que o seguem incondicionalmente eram 17% em agosto de 2020, segundo o Datafolha. Agora, são 11%. Sua popularidade é sustentada em linhas gerais por esse segmento, pelos evangélicos e pelos habitantes beneficiados pela explosão do agronegócio nas regiões Norte, Centro-Oeste e Sul. Mas entre os evangélicos sua aprovação também derrete. Há noves meses, a aprovação nesse grupo era de 40%, diz o Datafolha. Atualmente, é de 29%, tombo surpreendente de 11 pontos percentuais. Nas regiões Norte e Centro-Oeste, a rejeição subiu de 41% para 48%. As principais pesquisas têm mostrado cenário semelhante. Em agosto, a XP/Ipespe mostrou que a rejeição subiu 23 pontos percentuais em dez meses, atingindo 54%.

O desgaste ao longo do mandato é natural entre todos os governantes, mas não é apenas isso o que acontece com Bolsonaro. O Datafolha apontou que sua avaliação negativa no terceiro ano de mandato só é superada por Fernando Collor, que tinha rejeição de 68% neste momento como presidente. O sinal mais recente de isolamento aconteceu com o afastamento dos grandes empresários e banqueiros no último Sete de Setembro, quando a Febraban e entidades empresariais criticaram o clima de instabilidade institucional e as ameaças ao STF. É um fato inédito que os maiores representantes do PIB ressaltem seu distanciamento de um governante. O recuo de Bolsonaro com a carta pacificadora escrita por Michel Temer distendeu o ambiente, mas não reaproximou o mandatário do setor produtivo, principalmente por causa da volta da inflação e da falta de rumo na política econômica.

O afastamento é flagrante entre seus apoiadores mais próximos. O ex-deputado Alberto Fraga (DEM), líder da bancada da bala e amigo de quatro décadas, traçou uma linha após um drama familiar: a morte da mulher, de Covid. Ele critica o presidente pela forma como lidou com a pandemia e pela falta de sensibilidade com os doentes. Chegou a bloquear o presidente no WhatsApp. O sentimento é o mesmo entre antigos aliados próximos e entre os parlamentares que se empenharam para que chegasse ao Planalto. Uma das deputadas mais fiéis, Dayane Pimentel, ex-presidente do PSL na Bahia, resume a frustração. “Deixei de apoiar quando ele escanteou políticos limpos em detrimento dos conchavos com figurões do Centrão, para blindar a própria família”, afirma. “É uma frustração total. Estamos num País bagunçado, sem perspectivas e com um clima de guerra civil.”

A onda bolsonarista em 2018 foi impulsionada em grande medida pelos movimentos que defendiam uma nova política, mas o encanto inicial deu lugar à crítica feroz. Agora, a pauta que os une é o impeachment. Luciana Alberto, líder do Vem pra Rua, diz que Bolsonaro se apresentava como candidato de renovação e defendia as pautas do movimento, mas o grupo não pode ser conivente com corrupção ou crimes contra a democracia. “Nós retrocedemos, parece que estamos vivendo em 2017 com a corrupção de novo instalada e o desmonte das leis. Estamos com as instituições mais fracas, aparelhadas por militares”, diz. O coordenador do Movimento Brasil Livre (MBL) Rubinho Nunes aponta uma sucessão de erros do presidente, como a interferência no Coaf e a atuação para blindar a corrupção do filho Flávio.Também lembra o abandono das promessas de campanha, como a redução da máquina pública e as privatizações. Para ele, Paulo Guedes está afundando o País. “A gente vê uma sucessão de erros que é muito mais próxima de um governo Dilma do que se esperaria de um governo minimamente liberal. E quando vem a pandemia, foi uma tragédia a negligência, o superfaturamento das vacinas e toda uma gestão criminosa.”

Nova política se rebela

Nenhum dos dois grupos deve participar da manifestação prevista para o dia 2 de outubro, organizada por 16 partidos (incluindo PT, PCdoB, PDT, DEM, PSB, Rede, PSOL, PSDB, Novo, Cidadania e PV) sob a bandeira “Direitos Já”, um desdobramento dos atos de 12 de setembro que tiveram uma participação modesta. Eles consideram que esse movimento está sendo desvirtuado para servir ao interesse do ex-presidente Lula. “É só uma cortina de fumaça para tentar roubar a pauta das manifestações e trabalhar o projeto político dele”, diz Nunes. “O PT não quer o impeachment. Agiu para sabotar o 12 de setembro. Quer o ambiente político como está. A candidatura do Lula necessita da candidatura do Bolsonaro”, diz. É a mesma opinião da representante do Vem pra Rua. “Defendemos uma alternativa de terceira via”, afirma Luciana. Posição diferente tem outro grupo de renovação política, o Livres. “É hora de deixarmos de lado nossas divergências, suspendendo os palanques eleitorais, para construirmos uma coalizão inspirada no legado das Diretas Já. O Brasil não aguenta mais os crimes de Jair Bolsonaro contra a democracia e a Constituição”, divulgou o grupo.

O presidente do PDT, Carlos Lupi, que tenta impulsionar a candidatura Ciro Gomes, concorda com o Livres. “A ideia é ser um ato plural em que todos estejam unidos pela saída do Bolsonaro”, afirma. O recuo de Bolsonaro após o Sete de Setembro enfraqueceu a união pelo impeachment, quando pela primeira vez se vislumbrou uma real ação suprapartidária. É o que apontou o presidente do PSD, Gilberto Kassab. Mas o enfraquecimento de Bolsonaro se aprofunda, assim como sua provável incapacidade de se recuperar. Isso determina o jogo em Brasília. O governador João Doria (PSDB), que participou no dia 12, deixou até de mencionar Bolsonaro no lançamento de sua pré-candidatura presidencial, preferindo centrar fogo contra o PT. A fusão do PSL com o DEM, que criará a maior bancada do Congresso, também tende a isolar os aliados do presidente. E a oposição a Bolsonaro já faz o Novo e próprio PSDB expurgarem os aliados do mandatário. Até entre líderes do Centrão começa a se discutir a possibilidade de ele não concorrer, em função do derretimento.

Isso é pouco provável, já que o presidente direcionou toda a sua gestão para um segundo mandato. Um dos fundadores do Novo, João Amoêdo, que desistiu de se candidatar e passou a defender o impeachment no ano passado, aponta que a economia vai ser determinante. “Havia a questão da Covid, mas acho que está superada”. Para ele, a recuperação que se imaginava depois da vacinação não acontece porque há inflação. “Estamos num ambiente político conturbado, com dólar, inflação e taxa de juros em alta, e começamos a ter o preço de commodities caindo, especialmente o minério de ferro. O presidente não consegue trazer empregos e mudar a vida das pessoas. Ele acabou com a esperança. Excluindo-se o grupo que é muito fiel a ele, a realidade está chegando às pessoas, mesmo que com algum atraso.”

O diretor do Instituto Paraná Pesquisas, Murilo Hidalgo, concorda com o diagnóstico. “O Bolsonaro cai muito nas avaliações por causa da economia. Se a população estivesse com dinheiro no bolso, ele poderia continuar a falar besteiras. Com o Lula tinha corrupção e a popularidade ia bem. Hoje, se a economia continuar assim, acabou”, sentencia. Ricardo Ismael, cientista político da PUC-RJ, diz que a economia começa a influenciar as ações do presidente e justifica a queda dele nas pesquisas.” O especialista ainda considera que o discurso golpista é um problema para os próprios eleitores do presidente. “Bolsonaro recuou porque apenas uma minoria apoiaria um golpe. Não teria apoio nem entre os eleitores dele. Seria um nocaute. Parou de esticar a corda porque está se isolando cada vez mais”, afirma. Ismael também vê outros fatores de desgaste. “Hoje, a CPI da Covid já chega no presidente. O discurso dele está desconstruído. Foi candidato outsider e se construiu no público antipetista, mas hoje ele não se escora em nenhuma base contra a corrupção. O sujeito mais simples deseja que a vida dele não piore”, afirma. Por isso, o presidente passa a encontrar nos benefícios sociais uma tábua de salvação. “Ele está correndo para subsidiar gás e eletricidade. Senão, vai perder todo o apoio do homem simples. Sem resolver os problemas econômicos, ele não vai ser competitivo para 2022”, diz.

EX-APOIADOR Para Lobão, “missão é tirar Bolsonaro e fazer o Brasil sair desse loop tóxico da polarização entre petistas e bolsonaristas” (Crédito:Divulgação)

A crise econômica também pode explicar parte do desgaste entre os evangélicos, argumenta o pastor Ariovaldo Ramos, da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito (que nunca apoiou o presidente). “Os evangélicos estão retirando o apoio primeiro pela pandemia. Morreram, proporcionalmente, mais que a média brasileira porque aderiram ao negacionismo. Ele foi difundido dizendo-se que se você tem fé, está imune. Isso foi crueldade um crime contra uma população que emprestou a sua fé ao presidente.” Outro motivo, para o religioso, é a questão financeira. “Há aumento da miséria, e quem perde com isso são os mais empobrecidos. A igreja evangélica é basicamente formada por negros, mulheres e pobres. Foi o grupo que mais sofreu com as questões econômicas”, defende. Mas os evangélicos também se afastam por outras razões. A Igreja Universal distanciou-se de Bolsonaro porque acha que ele não a apoiou nos conflitos em Angola. Até os caminhoneiros não têm a mesma ligação. Conhecido por Chorão, o presidente da Associação Brasileira de Condutores de Veículos Automotores, Wallace Landim, demonstra arrependimento. “Fizemos campanha para o presidente, colocamos faixa nos caminhões. Mas percebemos que tudo o que beneficia os caminhoneiros não tem caráter de urgência, enquanto o que é bom para os grandes empresários tem prioridade”, publicou em dezembro de 2020. O caminhoneiro Zé Trovão ficou famoso na preparação do Sete de Setembro, mas muitos afirmam que ele não tem representatividade na categoria. E os caminhões que foram usados na Esplanada dos Ministérios, assim como para bloquear estradas, eram em grande parte de produtores, e não dos autônomos. Apesar de empresários de soja terem apoiado a manifestação golpista, entidades do agronegócio estiveram entre os maiores críticos do presidente.

TRAÍDOS Caminhoneiros bloquearam estradas após o Sete de Setembro, mas se sentiram enganados com o recuo do presidente (Crédito:Divulgação)

O mandatário tem até o momento afastado o risco de impeachment com o apoio do Centrão, que lhe garantiu controle sobre a presidência da Câmara. Mas o próprio acordo pode ser fragilizado pelo aumento da impopularidade. Bolsonaro teve que ceder um poder inédito aos parlamentares, e depende do bilionário orçamento secreto, entregue ao grupo fisiológico, para assegurar sua fidelidade. Porém, a ministra Rosa Weber do STF poderá acabar com essa aberração. Além disso, o arranjo com o Centrão se enfraquece no início do próximo ano, quando o poder de barganha do presidente diminui. Terá de acelerar a distribuição de cargos e ministérios, o que vai enfraquecê-lo ainda mais, tornando-o refém.

Tudo isso é um péssimo sinal para sua reeleição. Cada vez mais o presidente é empurrado para o extremo. Ele conta com uma base cada vez menor e mais radicalizada. Sua briga pela sobrevivência depende de uma parcela minoritária capaz de muito barulho, mas sem força para garantir a perpetuação no poder. Bolsonaro já chegou ao Planalto, um lugar que nunca esperava alcançar. Não terá a mesma sorte duas vezes.