Alista de criminosos que se tornam celebridades é longa. Do brasileiro Fernandinho Beira-Mar ao colombiano Pablo Escobar, esses perigosos personagens ganham destaque no imaginário popular graças à violência de suas ações, mas também pela ostentação com que vivem e os desafios constantes às autoridades – têm a ilusão de que são intocáveis. O maior traficante brasileiro, porém, é um desconhecido. O lançamento de “Cabeça Branca – A Caçada ao Maior Narcotraficante do País”, de Allan de Abreu, deve dar ao anônimo Luiz Carlos da Rocha a fama correspondente à sua periculosidade.

“Cabeça Branca” Allan de Abreu
Ed. Record / 224 págs.
Preço: R$ 44,90 (Crédito:Divulgação)

Não era à toa que ele também era conhecido como “fantasma”. Ao contrário de outros traficantes, que não resistem ao impulso de comprar aviões, barcos e carros de luxo, Rocha tinha uma visão pragmática do crime. Apresentava-se como produtor de soja, era discreto. Mesmo atuando nas sombras, conseguiu montar uma operação logística gigantesca: suas conexões internacionais passavam pelos cartéis do México, a máfia russa, o crime organizado sérvio e até a ‘Ndrangheta, da Calábria, na Itália. O conhecimento quase infinito sobre as rotas para a distribuição de drogas o transformou em um dos maiores “middlemen” do crime mundial, um intermediário que não produzia cocaína nem a vendia para os consumidores finais – mas cuidava para que ela chegasse com segurança a todos os envolvidos.

Seu perfil era discreto, mas acumulou dezenas de fazendas, 97 imóveis e 11 mil cabeças de gado

O crime em sua vida foi uma herança maldita. Seu pai era contrabandista de uísque e café na fronteira com o Paraguai. Aos poucos, percebeu que a cocaína dava um retorno maior – foi quando Rocha entrou no negócio. Ele transformou a tosca bandidagem do pai em uma operação que movimentava milhões de dólares. Descobriu logo que um dos pontos de apoio de qualquer estrutura criminosa eficiente é a sua capacidade de lavar dinheiro. Recorreu então a Alberto Youssef, doleiro que também era usado por políticos e virou alvo da Lava Jato. O livro detalha ainda como a droga chegava ao Brasil em pequenos aviões e era distribuída a partir do porto de Santos para a Europa e América do Norte. O esquema incluía corrupção policial, mas também uma parte complacente de players econômicos “legais”, como o agronegócio e empresas exportadoras.

Rota caipira

Allan de Abreu teve a ideia da biografia de Cabeça Branca em 2013, quando preparava o livro “Cocaína: A Rota Caipira”, sobre o mesmo tema. Durante a apuração, o autor se surpreendeu com a importância do personagem no contexto do tráfico internacional – e também com a falta de informações sobre ele.

Uma das razões para a caçada policial ter sido tão longa é que não havia fotos de Rocha. Sua identificação foi um problema que durou até a fase final, já que o criminoso passou por diversas cirurgias plásticas e mudou muitas vezes o nome. Só o laudo de reconhecimento facial, com fotos suas ao longo dos anos, tem 23 páginas – a perícia técnica foi a sua ruína.

Para elaborar o perfi, Allan pesquisou milhares de documentos, entre processos e autos policiais desde a década de 1980. Conversou ainda com parentes, comparsas e vítimas ao longo de três anos – só faltou o próprio protagonista, que não quis dar entrevista. “Recriar sua trajetória foi um desafio porque ele tinha o comportamento de um fantasma”, afirma o autor. Allan conta que só descobriu sua real dimensão no mundo do crime após sua prisão em Sorriso, Mato Grosso, em julho de 2017. Aos poucos, seus bens apreendidos começaram a aparecer: um patrimônio de mais de R$ 1 bilhão, com dezenas de fazendas, 11 mil cabeças de gado, mais de cem veículos e 97 imóveis.

Quem termina a última página fica com a impressão de que a trama daria uma ótima série de TV. Daria, não, dará: o autor já negocia os últimos detalhes da adaptação do livro com a Butique Filmes, produtora parceira da Netflix. Em breve, o desconhecido Cabeça Branca será mais um criminoso conhecido em todo o mundo. Pena que ele não poderá assistir à própria história: Rocha cumpre pena de mais de cem anos em um presídio de segurança máxima.

ENTREVISTA 
Allan de Abreu

Divulgação

Como um traficante tão importante conseguiu ficar tanto tempo solto?
Ele não deixava rastros, era muito desconfiado. Você nunca encontraria uma foto dele posando ao lado de uma Ferrari. Podemos dizer que ele sobreviveu no crime pela discrição.

Quando você teve a dimensão de sua relevância no tráfico internacional?
Quando ele foi preso e a lista do seu patrimônio começou a aparecer. Não é fácil acumular mais de R$ 1 bilhão, como ele fez. Se o dinheiro fosse legal, ele teria entrado para a lista da Forbes como um dos homens mais ricos do País.

O que o diferenciava de outros criminosos?
Ele pensava como empresário. Vivia entre o Mato Grosso e São Paulo, se apresentava como produtor de soja. Tinha uma vida confortável, fazendas, imóveis, mas sem ostentação. Não era como os outros barões da droga.

Por que ele não encerrou a carreira depois de acumular tanto dinheiro, ainda em liberdade?
A ambição não permite. Ele montou uma operação logística enorme, diversas rotas para distribuição da cocaína. Não é fácil largar isso.

Ele pertencia a alguma facção?
Não, trabalhava com qualquer um. Não havia ideologia, ele estava acima das facções.

Como montou sua rede de contatos?
Ele viajava muito ao exterior e recebia aqui representantes de todo o mundo.

Você tentou entrevistá-lo?
Sim, a família foi gentil e levou o pedido. Mas ele preferiu não falar.