Era início dos anos 1960 quando Maria Callas desistiu de interpretar a sedutora cigana Carmen na montagem da Ópera de Paris para o clássico homônimo de Bizet. Já entronizada a maior cantora lírica do século 20, a soprano nunca revelou o motivo de sua desistência, mas é consenso entre muitos biógrafos que La Divina se sentia intimidada pela personagem.

A desistência inesperada torna ainda mais impressionante que a substituta tenha sido uma jovem soprano brasileira, radicada na Europa há menos de uma década. A carioca Maria D’Apparecida aceitou o desafio e subiu ao palco da Ópera de Paris para se sagrar não apenas a primeira negra latino-americana a pisar no histórico tablado francês, mas a cantora que melhor compreendeu a obra mais icônica de Bizet.

Embora não tivesse a voz excepcional de Callas, Apparecida foi considerada uma das melhores atrizes da Ópera de Paris, se sagrando um dos grandes nomes do cenário europeu poucos anos após sofrer rejeição traumática no Brasil. A artista ouvira de um diretor que, embora cantasse bem, jamais subiria ao palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro por ser negra.

Filha de uma empregada engravidada pelo filho do patrão, D’Apparecida foi criada e educada por uma família que nunca a adotou legalmente, e teve a chance de voltar ao Brasil para brilhar no palco que a renegara, ao estrelar a turnê que a Ópera de Paris produziu em 1965 pela América Latina. A artista subiu ao Municipal do Rio como a principal cantora erudita da França.

E foi essa trajetória de tom folhetinesco que acendeu o interesse da dramaturga carioca Dione Carlos de contar a história da cantora pela primeira vez no teatro. Intitulada Maria D’Apparecida – Luz Negra, a obra ganha transmissão nas redes do Centro Cultural São Paulo. A artista descobriu a cantora em 2018 numa noite de Natal, enquanto pesquisava novos arquivos de música.

Curiosamente, 44 anos antes, em 1974, também numa noite de Natal, a carreira erudita da intérprete teria um fim abrupto quando, após um acidente de carro violento, dores muito fortes impediriam que alcançasse notas altas, além de dificultar que desempenhasse a demanda que os papéis lhe pediam.

“Fiquei fascinada com a imagem dela, comecei a pesquisar a sua história e me enfureci com o fato de nunca ter ouvido falar dela, uma figura histórica”, diz Dione Carlos, que esbarrou com a figura de Apparecida em um programa de TV francês interpretando Tamba Tajá, clássico composto pelo maestro paraense Waldemar Henrique, com quem a cantora desenvolveu parceria musical como resultado do fim de sua trajetória lírica.

Apparecida dedicou álbuns ao repertório de Henrique e do violonista Baden Powell, além de se apresentar no Brasil interpretando apenas clássicos da música popular. “De vez em quando, me forço a ampliar o arquivo musical, porque escrevo muito a partir desta escuta. Acabei esbarrando no vídeo da Maria. Escrevi essa história por amor, mas também por raiva. O primeiro me inspirou, o segundo me deu coragem.”

A raiva tem motivos de ser, uma vez que Apparecida morreu em 2017 sozinha e completamente esquecida na França. Os vizinhos acharam seu corpo depois de uma semana, e foram precisos meses até que ela fosse sepultada, graças aos esforços de um grupo de admiradores.

“Eu costumo dizer que formar roteiristas e dramaturgos é uma ação urgente, porque temos muitos personagens e narrativas apagadas para recuperar. Nosso trabalho é imenso, quase arqueológico, de voltar ao passado para afetar o presente e o futuro. É preciso olhar com atenção para o trabalho das pessoas que estão pesquisando a história do Brasil a partir de uma perspectiva negra e indígena, não somente europeia”, conceitua.

Maria D’Apparecida – Luz Negra marca não só o resgate da memória, mas de outro ofício na carreira de Dione Carlos. A dramaturga volta aos palcos após hiato de mais de uma década, quando abandonou a interpretação para se dedicar à vocação da escrita e ao cuidado com sua filha, diagnosticada com autismo.