O consumidor britânico se depara com uma situação inusitada: faltam produtos nos supermercados, algumas redes de fast-food e restaurantes cortaram pratos no cardápio e aumentou a dificuldade para encontrar artigos nas lojas de departamentos. Das entidades empresariais aos consumidores, todos são unânimes em apontar a causa para o desabastecimento: o Brexit, a saída do país da União Europeia. Consumado no início deste ano, o Brexit expulsou dezenas de milhares de trabalhadores europeus, que voltaram aos seus países de origem. A desvalorização da libra, que já vem desde 2018, deixou os salários no continente mais atrativos. Faltam 100 mil motoristas no Reino Unido, onde 90% das cargas são entregues por via rodoviária.

O desabastecimento também afetou as lanchonetes e restaurantes, que reabriram com o fim das quarentenas. O McDonald’s retirou os milkshakes do seu cardápio, enquanto a rede de restaurantes Nando’s, que serve frango frito, fechou 45 estabelecimentos. O curioso é que o Nando’s fechou os restaurantes na Inglaterra e Escócia, mas não na Irlanda (que permaneceu na União Europeia) e Irlanda do Norte (que ainda tem seu mercado ligado na prática aos europeus).

“Tem faltado muitas mercadorias por aqui. Ontem fizemos uma festa e não achamos Coca-Cola no mercado, só umas marcas ruins do interior da Inglaterra”, diz Filipe Pimentel, gerente de TI, de 50 anos, que tem cidadania britânica e brasileira e mora em Londres com a esposa e dois filhos. Pimentel diz que a falta de mão de obra ficou crônica após o Brexit. Faltam até trabalhadores agrícolas sazonais. “Há casos de pomares com frutas apodrecendo, porque não tem gente para colher. Até o ano passado, imigrantes da Romênia e Bulgária faziam esse trabalho, o que agora é proibido com o Brexit”, diz. “Foi ruim para eles, que ganhavam um dinheirinho e voltavam contentes para o Leste, e também para os agricultores daqui, que estão perdendo dinheiro”, observa. Mesmo com a situação mais difícil, Pimentel e a esposa, que tem cidadania austríaca, não pensam em ir embora. “O mercado de trabalho está se recuperando, mas falta mão de obra. Muitos amigos espanhóis, italianos e franceses preferiram voltar para o continente”, descreve.

SEM LEITE O McDonald’s suspendeu o milkshake; outras redes fecharam lojas (Crédito:ANDY RAIN)

Tempestade perfeita

O Reino Unido vive uma “tempestade perfeita” na sua economia, formada por quatro fatores: Brexit, pandemia, reorganização logística e problemas no mercado de trabalho, diz Mauro Roberto Schluter, especialista em logística na Universidade Presbiteriana Mackenzie em Campinas (SP). Segundo ele, o problema da falta de caminhoneiros decorre dos baixos salários — ao redor de 2,5 mil libras mensais —, que não atraem jovens britânicos. “Dos caminhoneiros, 65% têm mais de 45 anos”, argumenta. Já a pandemia trouxe uma reorganização logística. Com o avanço dos grandes marketplaces do comércio eletrônico, como a Amazon, ocorreu a redução das cargas consolidadas — transportadas por carretas — e a verticalização da logística, com as entregas feitas por furgões nas curtas distâncias. Desesperadas com a falta de motoristas, empresas pagam curso e licença para novos condutores, ao valor de 6 mil libras.

Até agora, o governo conservador do premiê Boris Johnson tem preferido que as próprias empresas resolvam o problema, mas é inevitável que também seja atingido por mais uma queda na popularidade. Essa é apenas mais uma crise que se soma à decepção generalizada com o Brexit, que veio embalado por promessas de mais dinamismo da economia — todas frustradas até o momento. As empresas alertam que a Imigração precisa facilitar a entrada de trabalhadores do continente, na contramão do discurso anti-imigração, que foi uma das bases do divórcio com a União Europeia. Se insistir nas restrições, o governo ameaça estancar a recuperação econômica pós-pandemia antes que ela se consolide. A conta do desabastecimento será paga pela população, mas também recairá sobre o premiê.