“Se não houver respeito, haverá ação legal. O Reino Unido é um parceiro confiável para a Europa?” Simon Coveney, Chanceler da Irlanda (Crédito:BURAK MILLI)

Após 23 anos de uma paz duramente conquistada, a Irlanda do Norte explodiu em protestos. Curiosamente, a violência que no passado era motivada pelo desejo dos católicos de unificação com a República da Irlanda cedeu lugar à indignação dos chamados “unionistas”, protestantes, revoltados com o Brexit e com o que consideram uma traição do governo de Londres — os unionistas querem continuar a fazer parte do Reino Unido. As tensões começaram no dia 30 de março, quando bandos tomaram as ruas de Belfast e outras localidades, atirando tijolos e coquetéis Molotov na polícia britânica. Pelo menos 90 guardas ficaram feridos. Em Belfast, um ônibus foi incendiado. A situação só se acalmou no dia 9, quando os manifestantes deixaram as ruas por causa da morte do príncipe Philip. Os governos de Londres, Dublin, Bruxelas e Washington pediram “o fim imediato da violência”.
Os temores são de que os manifestantes voltem às ruas após o funeral do marido da rainha Elizabeth II, marcado para o dia 17.

O pano de fundo dos atuais conflitos é o chamado “Protocolo da Irlanda do Norte”, que voltou a estabelecer fronteiras alfandegárias em portos e aeroportos entre o país e o Reino Unido. Em 2020, eles foram estabelecidos na complicada saída do Reino Unido da UE, para evitar a volta da fronteira entre a Irlanda (ao sul), que continua a fazer parte da União Europeia (UE), e a Irlanda do Norte, que, junto com o Reino Unido, saiu do bloco. Segundo o Protocolo, não há barreiras para as mercadorias que circulam entre as Irlandas — e entre elas e a Europa. Ou seja, a fronteira entre as “duas Irlandas” permanece aberta, como era antes do Brexit. Em compensação, produtos vindos do Reino Unido, que atravessam o canal, passaram a sofrer procedimentos alfandegários e recebem tarifas da UE. Isto criou, na prática, uma fronteira entre a Irlanda do Norte e o resto do Reino Unido. Em dezembro e janeiro, por exemplo, houve desabastecimento de alguns alimentos vindos da Grã-Bretanha nos supermercados de Belfast. O primeiro-ministro Boris Johnson se opunha a essa solução, mas foi obrigado a aceitá-la para viabilizar o Brexit nas negociações com a União Europeia.

“A Irlanda do Norte caminha para a unificação com o resto da Irlanda. A economia da ilha já foi reunificada desde 1992 e as novas gerações não vêem mais sentido em fazer parte do Reino Unido”, diz Leonardo Trevisan, professor de Geoeconomia da ESPM. Segundo ele, Londres praticamente abriu mão da Irlanda do Norte com o Brexit. “A Europa não cederá um milímetro nesta questão. O irlandês do Norte sempre se imaginou britânico, mas não é. Desde 2019, o parlamento local é controlado por nacionalistas, que defendem a reunificação”, afirma.

Histórico violento

DIAS DE GUERRA Soldados britânicos em Belfast, 1972 (Crédito:Peter Kemp)

Não foi apenas a tensão gerada pela nova ordem pós-Brexit que causou os conflitos dos últimos dias. Outra fonte de disputa foi a recente decisão das autoridades de não processar multidões que se reuniram em um funeral em junho de um comandante do Exército Republicano Irlandês (IRA), apesar da proibição de reuniões em massa por causa da pandemia. Mas a reorganização causada pela separação do Reino Unido da União Europeia foi, de fato, o principal fator que despertou antigos ressentimentos que haviam sido superados no acordo histórico de 1998, que pôs fim a 30 anos de conflito na região. Eles haviam sido suplantados quando o presidente americano Bill Clinton patrocinou o acordo de cessar-fogo entre o IRA e o governo britânico, liderado por Tony Blair, que desembocou no acordo da “Sexta-feira Santa”. O IRA, grupo paramilitar que ficou famoso por promover atentados sangrentos, aceitou o desarmamento e o fim da luta armada, que deixou 3.500 mortos.

Para afastar o fantasma de um novo conflito, o governo britânico avalia suspender temporariamente o Protocolo, mas com isso pode provocar uma reação da União Europeia. “Se não houver respeito ao Protocolo, haverá ação legal. O Reino Unido é um parceiro no qual a Europa pode confiar?”, questiona Simon Coveney, chanceler da Irlanda. Ao se separar da Europa, Boris Johnson sonhou em criar uma nova era de prosperidade para o Reino Unido. Até agora, ao contrário, ressuscitou conflitos que mostram a incongruência do tradicional orgulho imperial britânico.