Sérgio Martins
“Você é do Brasil? Olha, não fala para ninguém, mas vamos fazer uma turnê no teu país este ano.”
“Eu sei, Ozzy, é por isso que você está me dando essa entrevista.”
“Sério?”
“Sim, sério.”
“Poxa, então venha nos assistir.”
Gafes como essa faziam parte do anedotário de todo jornalista que entrevistou Ozzy Osbourne (eu tive o privilégio três vezes). Com o cérebro carcomido por décadas de álcool e aditivos químicos em abundância, o cantor volta e meia esquecia de acontecimentos importantes referentes à sua banda (“não me pergunte nada sobre os anos 1970 porque eu não lembro”, brincava) ou transformava uma entrevista comum numa sucessão de piadas e/ou histórias sem nexo.
Mas John Michael Osbourne, que morreu hoje aos 76 anos em decorrência do Mal de Parkinson (e “cercado de amor,” segundo sua família) foi muito mais que personagem de resenhas de jornalistas na mesa de bar. Anal, qual roqueiro do século XX pode se orgulhar de ter mudado os rumos da música por duas vezes em menos de vinte anos?
Ozzy foi o arquiteto de um gênero que veio a ser batizado como heavy metal. Nascido em Birmingham, a cidade industrial de céu plúmbeo e repleta de prédios destruídos pelos bombardeios alemães na Segunda Guerra, Ozzy se uniu a Tony Iommi (guitarra), Geezer Butler (baixo) e Bill Ward (bateria) na construção de um som que retratasse o clima de desesperança
daquele período.
O resultado foi o Black Sabbath, a banda que desenhou o gênero: canções pesadas e de andamento arrastado (pelo menos boa parte delas), letras com temas macabros (cortesia de Butler, leitor do escritor de terror Dennis Wheatley), guitarras distorcidas e o vocal anasalado de Ozzy, que se mostrou ideal para se passar a sensação de aição que se apossou da juventude.
Em sua primeira passagem pelo Black Sabbath, Ozzy lançou oito discos. Seis, pelo menos, são essenciais: Black Sabbath (1970), Paranoid (1970), Master of Reality (1971), Vol. 4 (1972), Sabbath Bloody Sabbath (1973) e Sabotage (1975).
Dali, saíram alguns dos principais clássicos do rock macabro e canções que por muito tempo foram os cavalos de batalha do quarteto. Paranoid, War Pigs, N.I.B., Sweet Leaf, Iron Man, Snowblind… A lista é longa.
Ozzy, que nunca dispensou uma bebida e/ou um aditivo químico, foi mandado embora do grupo por mau comportamento em 1979.
A demissão do Black Sabbath, ao contrário do que se poderia esperar, acabou por ressuscitá-lo. É a vez de Sharon Arden entrar em cena – primeiro como empresária, depois como Mrs. Sharon Osbourne.
Ela o tirou da sarjeta (literalmente) e montou uma banda (sem nome) que trazia um novo aspecto sonoro.
Os andamentos morosos e o peso excessivo do grupo inglês foram trocados por um trio de instrumentistas que tocavam mais leve e mais rápido.
A guitarra sempre teria de trazer um virtuose dos solos – a princípio, uma função exercida por Randy Rhoads, força criativa dos discos Blizzard of Oz (1980) e Diary of a Madman (1981). Em 1982, contudo, Rhoads morreu num estúpido acidente aéreo – o bólido em que estava adentrou uma garagem e explodiu, matando a todos.
A função de Rhoads foi posteriormente exercida por outros guitarristas incríveis, mas que nunca se igualaram ao talento do músico original. O estilo desenvolvido por Ozzy e grupo mudou os rumos do rock. Ele seria assimilado e copiado pelas bandas de hard rock dos anos 1980 – casos de Ratt e Motley Crue.
Ozzy e Sharon casaram-se em 1982 e o vocalista deu a ela plenos poderes sobre sua carreira. Sharon tem o mérito de sobreviver aos ataques de fúria do vocalista – em 1989, ele tentou matá-la por estrangulamento – e arquitetar a persona que consagraria Ozzy pelas décadas seguintes.
Ele se tornou o Príncipe das Trevas e uma espécie de padrinho das novas bandas que surgiram no cenário do rock pesado. Sharon criou o Ozzfest, festival dedicado ao heavy metal e que amparou desde grupos de nu metal (uma mistura de metal e rap) a veteranos da cena como o trio Motorhead – cujo baixista e líder, Lemmy Kilmister, foi parceiro do vocalista nas canções Hellraiser, I Don’t Wanna Change the World, Desire e no sucesso Mama I’m Coming Home.
O vocalista ensaiou um retorno ao Black Sabbath em 1997, mas só efetivou sua reentrada no grupo catorze anos depois.
O trio original e mais o baterista Brad Wilk (posição que na turnê foi assumida por Tommy Clufetos) lançaram 13, o derradeiro disco do grupo. O Black Sabbath saiu então em uma excursão de despedida que passou pelo Brasil em 2014. No início deste ano, contudo, Sharon organizou Back to the Beginning, uma espécie de concerto/tributo no qual a formação original do grupo tocaria pela última vez.
Para muitos, a performance do dia 5 de julho seria (como foi) a despedida de Ozzy Osbourne, que desde 2020 sofria do Mal de Parkinson.
O Príncipe das Trevas se apresentou sentado num trono estilizado, de onde mal conseguia cantar os sucessos que o transformaram numa lenda do rock.
Mas não importa: ver o ídolo de gerações enfrentar as consequências de uma doença tã terrível e emocionar o público presente no estádio e outras milhares de pessoas que acompanharam o show via internet foi a melhor prova de imortalidade que alguém poderia dar.
Vai em paz, mestre.