Foi por meio de seu olhar aguçado e sem condescendência em “Cidade de Deus” (2003) que o cineasta paulista Fernando Meirelles, 60 anos, ficou conhecido em todo o País e no exterior – e, além dele, adquiriu visibilidade também a própria comunidade carente que empresta o seu nome ao filme. Em geral, é assim que Meirelles enxerga os fatos e a vida, e claro que não seria de forma diferente, agora, na Olimpíada – curiosamente, nossa primeira medalha de ouro veio com Rafaela Silva, uma atleta genuína da Cidade de Deus. À ISTOÉ, ele diz que “Pelé já vive no Olimpo” e que o maratonista Vanderlei Cordeiro de Lima foi “uma escolha perfeita” para acender a pira. Afirma ainda que já não se mobiliza com o que declaram os políticos: “Ainda bem que há uma trégua olímpica nessa guerra sangrenta que tomou Brasília”. Finalmente, ele rechaça que houvesse uma estratégia para abafar vaias ao presidente Michel Temer: “Não havia um plano B”.

Há como comparar o estresse de fazer um filme com o estresse de montar a abertura de uma Olimpíada, sabendo que ela seria vista em todo o mundo, recebendo críticas ou aplausos? O que impõe maior pressão?

Nenhuma pressão me pareceu maior na vida do que a responsabilidade de falar pelo Brasil para 3,5 bilhões de pessoas ao redor do mundo. Perto disso, um filme é um passeio no parque. “Avatar” (blockbuster mundial de James Cameron) teve só um terço da audiência que a abertura conquistou. A Daniela Thomas, o Andrucha Waddington e eu, todos apoiados por um time de gente extremamente talentosa e defendidos pelo Abel Gomes, nosso produtor, entregamos a alma para tentar acertar.

Acha que o brasileiro tem a chamada síndrome de vira-lata, como dizem? Houve muito pessimismo e muitas dúvidas se seríamos capazes de realizar os Jogos.

Talvez não seja viralatismo, talvez tenhamos é uma visão de curto prazo. Esquecemos rápido o passado e não temos o hábito de olhar para o futuro – que chega e nos surpreende.

Há alguma imagem da festa que o sr. imaginou que ficaria rodando o mundo com sucesso e, ao final, acabou passando quase despercebida? É comum acontecer isso com quem trabalha na área de criação, algumas vezes uma expectativa não é correspondida…

Uma das imagens da abertura que achei que mais mobilizaria o público e a imprensa local é a do mapa do Rio de Janeiro sendo invadido pelo mar.

E o que aconteceu com essa imagem?

Passou batida, talvez por ser uma projeção do futuro. Parece que ninguém aqui dá muita bola para o futuro.

Estamos vivendo simultaneamente dois momentos antagônicos: a euforia dos Jogos Olímpicos e a tensão do impeachment.

A Olimpíada é o maior evento de mídia que existe no planeta, o maior encontro planetário. Os chineses e os espanhóis mudaram a percepção de mundo a respeito de seus países a partir dessa plataforma, e isso impulsionou fortemente as duas nações. Meio mundo está assistindo ao Brasil diariamente, vendo a paisagem, coletando impressões. Temos de fazer com que os Jogos Olímpicos deem certo, faz todo sentido deixar o impedimento para segundo plano já que é um fato local que interessa e impacta bem menos gente.

Diante do quadro atual da política no Brasil, como o sr. se coloca? Como vê e como sente esse momento, especificamente em relação aos políticos?

Simplesmente não consigo mais me mobilizar com o que dizem os políticos. Ainda bem que há uma trégua olímpica…

Trégua olímpica?

É, trégua olímpica nessa guerra sangrenta que tomou Brasília.

Sobre o processo de impeachment, boa parte da classe artística tem se posicionado contra ou a favor. Qual é a sua opinião? Acha que essa divisão de artistas, de modo geral, pode vir a afetar o trabalho na área da cultura? Por exemplo, no cinema, na televisão…

Não caio nessa armadilha. Não votei em Dilma. Assim como não tenho fé religiosa, não tenho fé ideológica, que são fenômenos mentais da mesma natureza.

Sob qual perspectiva o sr. analisa o que está chamando de fenômenos mentais? São ruins, são bons…

As pessoas nas quais esse fenômeno se manifesta tendem a evitar o convívio com quem pensa diferente.

O que é importante fazer frente a isso? O que dá para fazer, pensando sob a ótica de trabalho cultural, de manifestação artística…

Foi justamente contra tal atitude que criamos aquele bailão na cerimônia de abertura, no qual todo mundo dançou junto. Buscar as semelhanças e celebrar as diferenças foi o mote.

O que acha da intenção do COI em recorrer contra a permissão para manifestações políticas do público?

O COI não é o legislativo.

O sr. falou que a Gisele Bündchen, na cerimônia de abertura, teria errado na caminhada porque foi mais lenta do que o previsto. Muitos internautas ficaram furiosos. Foi isso mesmo o que o sr. disse ou foi mal compreendido?

Não falei não, quem disse isso foi um jornalista.

Se não foi isso o que aconteceu, qual foi o fato? O que realmente ocorreu?

Eu falava na rádio que todo show acontece com um time-code, tudo precisa acontecer com precisão, pois, se algo não estiver dentro do tempo, o que vem a seguir passa por cima. Tive a infelicidade de querer exemplificar mencionando que a Gisele saiu um pouquinho depois e por quatro segundos perdemos o final da sua cena. Fiz questão de acrescentar que ninguém percebeu, que foi lindo e que ela está entre as imagens que mais bombaram. O repórter que escreveu o texto, no entanto, sapecou a palavra “erro” e eu me ferrei. Preciso aprender a ser chapa-branca, só me ferro nessas bobagens.

E os internautas?

Quanto aos internautas furiosos, eu nem fico sabendo pois não tenho Facebook, snapchat e coisas assim. E não sinto falta.

É verdade que a família de Vinícius de Moraes ameaçou processá-lo por achar que ele não teve o mesmo destaque de Tom Jobim?

Essa não chegou até mim. Fizemos uma homenagem ao Tom e ao Oscar Niemeyer, mas eles estavam ali representando toda aquela geração dos anos 1960 que internacionalizou o Brasil. Isso estava na informação para a imprensa.

Vinícius de Moraes também?

Vinícius estava nesse pacote da década de 1960, assim como João Gilberto, Edu Lobo, Baden Powell e toda aquela turma fantástica.

Outra cobrança foi sobre a ausência de Pelé, que, segundo o sr. explicou, declinou do convite para participar da abertura por motivo de saúde. Ele acenderia a pira. Como se sente sendo tão elogiado e cobrado ao mesmo tempo?

Claro que o Pelé é o atleta do século e todo mundo sabe disso, mas a Daniela, o Andrucha e eu sempre achamos que o maratonista Vanderlei Cordeiro de Lima seria uma escolha perfeita.

Foram os srs. que escolheram o Vanderlei Cordeiro de Lima?

Não coube a nós a escolha, mas ficamos felizes por ele ter subido a escada em direção à pira. Ele é o único atleta brasileiro que recebeu a medalha Pierre de Coubertain, a honra máxima no mundo olímpico. É um exemplo do espírito esportivo e representa o brasileiro comum, bem ao gosto de toda a cerimônia. Pelé já vive no Olimpo e merece, mas o Vanderlei teve de subir até lá, isso tem mais drama e foi melhor para a cerimônia.

Noticiou-se que haveria um esquema para abafar eventuais vaias ao presidente Michel Temer. É verdade?

Os fogos sempre vieram antes, como aconteceu. Não havia um plano B, íamos seguir o protocolo.

Qual é a sua expectativa para o saldo da Olimpíada?

Tenho visto um pouco da cobertura internacional e sinto que aquela onda negativa já virou. Claro que há uma coisa aqui e outra ali, mas estou sentindo que existe um clima geral de encantamento. O vírus zika e essas coisas estão ficando para trás. Vejo atletas darem entrevistas para tevês de seus países, e eles estão bem felizes e bem impressionados. “A lagoa é o lugar mais incrível em que já remei”, disse um, “a baía estava com a água transparente”, declarou outro. Quero crer que sobreviveremos com um saldo positivo na imagem.

O sr. pediu menos intolerância e preconceito. Acredita nessa possibilidade para o mundo?

Não há outro caminho.

Mas existe muita falta de compreensão, muita intolerância, muitas posições polarizadas que levam as pessoas a não mais se entenderem. Nem a conversarem…

Há muita intolerância, mas também há muita gente que compreende o outro. Tolerar quem não pensa ou não é igual a nós é a única maneira para se construir um país ou um mundo.

Os srs., que assinam o evento dos Jogos, estão em algum projeto?

Eu estou envolvido em duas séries para tevê. O Andrucha está finalizando o filme “Penetras 2” e, no final do ano, vai lançar o longa “Na Pressão”. A Daniela tem seu filme “Vazante” selecionado para o Festival de Toronto e outros festivais internacionais. Ao mesmo tempo, ela está montando “O Banquete”, que rodou no começo do ano em meio ao nosso trabalho para a abertura.

Como trabalhar em conjunto?

Criamos uma parceria impressionante. Foi um processo ótimo.