Reinaldo Varela é um dos pioneiros do automobilismo brasileiro. Sem nunca ter passado por campeonatos famosos como Fórmula 1 ou Fórmula Indy, o veterano de 60 anos ainda é pouco conhecido do público em geral. Mas não por falta de títulos. Ele acabou de se sagrar tricampeão do Mundial de Rally Cross-Country, competição do mesmo estilo do Rally Dakar, com a chancela da Federação Internacional de Automobilismo (FIA), e exibe um currículo de 35 conquistas nacionais e internacionais.

O paulista ganhou status de desbravador do automobilismo nacional por se tornar um dos primeiros profissionais do rali. Ao contrário da maior parte dos esportistas da modalidade, Varela nunca sonhou em pilotar uma Ferrari ou Mercedes nos autódromos mais badalados do mundo. Ele sempre quis o contato com a terra e a emoção do desconhecido nos trajetos dos ralis. A paixão é tanta que Varela formou sua família, ao lado da esposa Nani, em meio à poeira das provas. Não por acaso o patriarca e os três filhos – Gabriel, Rodrigo e Bruno, todos pilotos de rali – formam a “Família da Poeira”, que já virou uma espécie de logomarca do grupo.

A família celebrou nesta quarta-feira o tricampeonato mundial de Varela no deserto do Saara, no Marrocos, pela equipe Monster Energy/Can-Am. Ao chegar em primeiro lugar na última das quatro etapas da temporada (venceram também no Catar e no Casaquistão), o veterano e seu navegador, Gustavo Gugelmin, faturaram o segundo título da dupla e o terceiro de Varela. Este levantou o troféu também em 2001 e 2012, nas categorias T1 e T2, de carros.

Desta vez, a dupla esteve na T3, pilotando um UTV, uma espécie de “gaiola” que vem fazendo sucesso nos principais ralis do mundo nos últimos anos. Foi a estreia deste tipo de veículo no Mundial. O piloto, inclusive, foi campeão desta categoria no Dakar em 2018. Neste ano, foi o terceiro colocado. “Vai de 0 a 100km/h em 3,8 segundos. E, como não tem parabrisa, é vento no rosto o tempo todo, igualzinho a uma moto”, descreve Varela, em entrevista ao Estado. O veículo, com tecnologia especial para o campeonato, tem custo estimado em 200 mil euros (cerca de R$ 900 mil).

Mas nem sempre Varela pilotou carros tão elaborados. No começo, em 1982, chegou a pegar emprestado carros de amigos para guiar em ralis pequenos no interior do país. Sem dinheiro da família, vivia em busca de patrocinadores e aceitava tudo o que recebia. “Meu carro parecia um jornal, de tanta propaganda. Um cara dava o banco, o outro, o ar do pneu. Outro fornecia o combustível”, lembra. “Só depois de alguns anos fui virando profissional e ganhando apoio maior das empresas.”

Foi em meio às competições que conheceu sua esposa, na cidade de Gramado (RS), em 1985. “Acho que foi a vitória mais especial da minha vida porque foi quando conheci a Nani”, recorda, sem esquecer dos números. “Foi a minha prova de número 29 e a minha terceira vitória da carreira. Pilotei um Escort XR3”, detalha.

Desde então, Nani passou a acompanhar Reinaldo em cada corrida de rali. A ausência dela é exceção. Em uma delas, em 1995, o piloto estava competindo no Paraguai enquanto a esposa estava em São Paulo para dar à luz ao segundo filho do casal. Desde pequenos, Rodrigo (29 anos), Gabriel (24) e Bruno (22) acompanham o pai nas provas. Acabaram tornando-se todos pilotos de rali e agora desafiam o pai nas competições. Os quatro integram a mesma equipe, mas guiam veículos diferentes nas provas.

“Quando estamos competindo, pensamos apenas em fazer o nosso papel e cada um faz o seu. Mas quando um quebra ou sai da corrida mais cedo, passa a ajudar os outros. É uma regra nossa: um tem que auxiliar o outro. Nossas vitórias foram sempre por causa do trabalho em equipe”, afirma o patriarca da família. Os três filhos seguem o caminho de sucesso do pai. Todos já somam títulos no Sertões, o mais prestigiado rali do País.

A família também atua junto longe da poeira. Os três filhos têm formação em administração de empresas (o mais novo completará o curso neste ano) e ajudam na gestão da franquia de restaurantes Divino Fogão. Varela criou o negócio a partir dos seus ganhos como profissional do rali. Hoje, os papéis se inverteram e é a rede de restaurantes que patrocina sua equipe nas competições.

POEIRA E FRALDAS – O rali cross-country é um dos mais exigentes em termos físicos e mentais. É o equivalente às provas de endurance, como se fosse uma ultramaratona ou as 24 Horas de Le Mans dos ralis. No Marrocos, na última etapa do Mundial, as equipes percorreram 2.600 quilômetros, uma média de 500km por dia no meio do Saara.

Tal desafio exige maior experiência, o que justifica o sucesso de Varela neste tipo de prova, mesmo aos 60 anos. “Na média de idade, eu estou fora da casinha. A maioria é moçada nova e é uma satisfação grande vencer os mais novos e perceber que ainda dá para ser competitivo”, comenta.

Os trajetos longos e desconhecidos também embutem riscos a todo momento. “Já tive todo tipo de perrengue. Já dormi no meio do mato com dois graus negativos, sob chuva ou atolado. Já peguei pneumonia, já fui resgatado de helicóptero. O Gustavo [navegador] já sofreu esmagamento de coluna”, enumera Varela. A prova mais longa que já disputou teve largada às 6h de um dia e chegada somente às 20h do dia seguinte. “Sem parar para dormir, direto.”

O ritmo de ultramaratona exige medidas incomuns por parte de pilotos e navegadores. Gustavo, que vem a ser primo de Maurício Gugelmin (ex-piloto de F-1 e F-Indy), revela um dos segredos do sucesso da dupla: fraldas. “Corremos de fralda para fazer xixi sem precisar parar. Se parar, perde muito tempo”, explica o navegador, de 36 anos. “Quase ninguém percebe, mas outros pilotos também fazem isso. É uma boa estratégia.”

A tática, de fato, parece funcionar. Juntos, Varela e Gustavo estão com aproveitamento de 100% no exterior, com vitórias em todas as competições que disputaram desde 2012. No total, o piloto soma 35 títulos na carreira. Só no Sertões, são oito conquistas. E mais oito no Campeonato Brasileiro da categoria. São tantos troféus que o veterano precisa de quatro lugares diferentes para armazená-los.

“Tenho muito carinho por todos eles. Guardo um pouco no meu escritório, outros na fazenda, na oficina e também no Divino Fogão. E agora tem também os troféus dos meninos. É muita coisa. A Nani fica maluca”, brinca o piloto, que contabiliza 382 provas disputadas na carreira, com 122 vitórias, e não tem planos de parar tão cedo. “Penso em aposentadoria, sim, mas para daqui a 15 anos. Acho que tá bom, né?”