Manhã de domingo, rodada de abertura do Campeonato Paulista de Futebol de Amputados. Um clima festivo dá o tom do ambiente onde atletas dos oito times participantes se confraternizam em um espaço que separa o campo dos vestiários. Em meio a sorrisos, abraços e brincadeiras, alguns dos boleiros que agora vivem essa sensação de inclusão social tiveram suas trajetórias modificadas pelas mãos de William Farias. Quando não está trabalhando como funcionário de TI, esse habilidoso meia-atacante usa o seu olho clínico para apresentar o esporte adaptado a deficientes que, muitas vezes, se encontram no fundo do poço por causa da transformação provocada pela amputação.

“Conseguir apresentar o esporte a pessoas que não tinham perspectivas, e perceber a realização delas jogando futebol de amputados é maravilhoso. Quando você resgata uma vida, muda toda uma família. A pessoa começa a se integrar de uma maneira diferente e isso reflete nos filhos, na mulher, nos irmãos, nos pais. Ele deixa de ser um coitado e passa a se tornar um cidadão”, afirmou.

Com um currículo recheado de conquistas e convocações frequentes para a seleção brasileira de amputados, William, de 38 anos, é uma referência na modalidade. Pelo Corinthians, foram sete títulos Brasileiros, sete Paulistas e ainda seis troféus da Copa do Brasil. Tamanha categoria rendeu até um apelido. Se no futebol profissional, o Brasil transformou Ronaldinho Gaúcho em R10, na categoria amputados, William Farias teve acrescentado à letra inicial de seu nome (W) o número imortalizado por Pelé.

“Sou mais um garçom, um articulador, do que um artilheiro nato”, disse em tom humilde. Mas se no apelido a semelhança remete ao ex-craque revelado pelo Grêmio, é Ronaldo Fenômeno quem realmente o inspira quando o juiz apita o início do jogo. “Esse cara sofreu muitas contusões e conseguiu superar tudo. Para mim é um verdadeiro exemplo de perseverança”, afirmou o jogador que este ano vai defender o São Bento de Sorocaba.

Recentemente, W10 ganhou os holofotes por repetir o gol que deu ao polonês Marcin Olesky o título do Prêmio Puskás, deixando Richarlison em segundo plano. Apesar da fama e da visibilidade que o seu “feito” ganhou com a viralização do vídeo na internet, o habilidoso meia tratou o assunto com banalidade. A realização vem mesmo de poder estender a mão para anônimos que não superaram a perda de um membro e precisam de ajuda.

“É o que dá sentido à nossa existência. Se eu faço isso hoje, é porque alguém me ajudou quando eu mais precisei”, disse William Farias à reportagem do Estadão pouco antes da solenidade de abertura do Campeonato Paulista de Futebol de Amputados.

Em janeiro de 2011, um acidente de moto virou a sua vida de cabeça para baixo. Com a colisão veio a perda parcial da perna direita. Após meses de forte depressão, um amigo o levou ao futebol de amputados. Além da mudança psicológica, essa nova fase provocou também uma nova visão de mundo.

“Na modalidade eu descobri muitas pessoas que tinham o mesmo problema que eu e eram muito felizes. Aqui temos verdadeiras lições de vida. Se você não tem um trauma, uma amputação, muitas pessoas nessas condições vão passar ao seu lado e você não vai perceber. Então, comecei a reparar mais nessas situações. Assim comecei a resgatar algumas vidas”, comentou W10.

E no papel de “olheiro”, sua busca rendeu frutos tanto na questão de inclusão, como também no que diz respeito a rendimento. Felipe, Carlos e Allan Mosquito conheceram o futebol de muletas após a abordagem de William. Hoje, o trio integra a seleção brasileira de amputados.

Allan Mosquito, que atualmente defende o Assama Maringá, marcou presença na rodada de abertura do Campeonato Paulista para rever antigos companheiros. Ao Estadão, ele conta que a depressão deu lugar a um novo homem depois da conversa que teve com William logo após o seu acidente, em 2014, em uma lanchonete.

“Sentou e queria saber se eu gostava de esporte. Daí foi levando o assunto para esse caminho. E eu nem sabia que tinha futebol de muletas. Gostei e a adaptação veio rápido. Com seis meses, eu estava na seleção brasileira.”

Aos 26 anos, Mosquito quer servir de exemplo para quem procura um caminho por meio do esporte adaptado. Um dos principais nomes do momento, ele já foi eleito o terceiro melhor jogador do mundo em 2018. Nos últimos dois anos tem sido o principal artilheiro das competições no Brasil. E mais, por meio do esporte, conheceu países como Argentina, Colômbia, Chile, Turquia e México.

“Agradeço a Deus por ter colocado o William na minha vida. Tinha vontade de não viver mais. Nada mais tinha sentido. Mas por causa do meu parceiro W10, minha história é outra. Hoje sou mais feliz com uma perna do que com duas. Cheguei onde jamais chegaria. Me sinto como se estivesse no meio de uma grande família”, afirmou Mosquito.

Dionísio é mais um dos amputados que hoje praticam o futebol adaptado por influência desse “missionário”. A diferença, nesse caso, é que a ordem para uma primeira abordagem aconteceu de forma invertida. “Já tinha sofrido o acidente de trânsito e estava tentando me recuperar da nova realidade quando ouvi falar do William e do apoio que ele dava às pessoas nesse estado. Fui procurá-lo e me recebeu muito bem. A importância dele foi dar liberdade para que pudesse chegar perto e conversar. Se me ignorasse, eu poderia não estar aqui jogando”, afirmou o volante que atualmente é companheiro de W10 no São Bento de Sorocaba.

Coordenador da seleção brasileira da modalidade e acostumado a conviver nesse universo onde os jogadores buscam o esporte muitas vezes como uma última saída, Diego Nunes disse que a inclusão social sempre vai ser vista como prioridade em comparação com o rendimento das equipes.

“O rendimento é bem visto, mas você não pode pegar uma pessoa que acabou de se acidentar e colocar lá. Tem toda uma questão da psicologia, do trabalho com fisioterapeuta, com os voluntários. As pessoas que estão aqui muitas vezes buscam um refúgio e na nossa modalidade, eles encontram um abraço”, afirmou.

EVENTO MOVIMENTA ESPAÇO E ATRAI CRIANÇAS

Cercada de protocolos, com direito a times perfilados e também execução do hino nacional, a rodada de abertura do Campeonato Paulista de futebol de amputados contou até com uma transmissão improvisada de uma web rádio direto da arquibancada que chegou a ter um público de cerca de 200 pessoas.

No campo, crianças dividiram o espaço com os atletas antes de os jogos terem início. Convidado especialmente por um dos organizadores, Gustavo Paulon Lopes, de sete anos, aluno da escola Pé no Chão Cirandarte, acabou vivendo um momento especial. O menino, que nasceu com uma má formação congênita, e usa uma prótese na perna direita, interagiu com colegas de seu colégio que também estiveram no evento. Entusiasmado, arriscou até alguns chutes no gol.

“Essa experiência dele aqui está sendo ótima. O Gustavo não está se sentindo diferente, está brincando muito com os amigos da escola e tudo parece uma festa. Ele se impressionou com o tamanho do campo e achou tudo muito bonito”, afirmou a mãe Bruna Paulon Lopes.