A jornalista Beatriz Buarque ficou surpresa ao receber a notícia de que a organização não governamental (ONG) Words Heal the World (Palavras Curam o Mundo) tinha sido escolhoida a Melhor Organização de Esforços pela Paz pelo Fórum Mundial da Paz de Luxemburgo. A ONG, criada por Beatriz em 2018 no Reino Unido, capacita jovens para desenvolver estratégias de desconstrução de discursos de ódio e extremismo no Brasil e no mundo.Brasileira recebe prêmio internacional por combate ao discurso de ódio

Natural de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, Beatriz soube que a ONG tinha sido escolhida em dezembro de 2019, mas a divulgação oficial do nome dos vencedores foi feita só no final de maio.

A ONG está registrada há dois anos no Reino Unido, onde Beatriz fez mestrado em relações internacionais e agora faz o doutorado em política. “Foi uma surpresa maravilhosa, porque a gente tem produzido muito conteúdo para combater o ódio. E sem patrocínio. Então, receber esse prêmio com tão pouco tempo de existência e sem patrocínio realmente é um sinal de que o trabalho que temos feito está gerando um impacto”, disse a jornalista à Agência Brasil.

Por causa da pandemia do novo coronavírus, a cerimônia de entrega do prêmio, que estava prevista para 27 de maio, foi adiada para 28 de maio de 2021, em Luxemburgo.

Voluntariado

A ONG trabalha com um time de mais de 40 voluntários. “O coração do Words Heal são jovens estudantes, em sua maioria, de jornalismo. Temos também alguns alunos de letras, design gráfico, mas a maioria são alunos de jornalismo do Brasil, da Argentina, do México e do Reino Unido. Como sou formada em jornalismo, eu empodero esses alunos, eu os capacito a desconstruir essas mensagens de ódio”, explicou Beatriz.

Para a jornalista, um dos grandes problemas encontrados no Brasil diz respeito a religiões de matriz africana, que têm sido objeto de preconceito e ataques. “É um problema gravíssimo, que tem no cerne o racismo”. Beatriz destaca que é preciso entender que extremismo não é apenas de cunho ideologico, como fascismo ou nazismo, mas também quando uma pessoa estigmatiza outra por causa da cor ou adreligião, e a trata como se fosse inferior. “Isso também é extremismo, porque você chega ao extremo, considerando o outro inferior, agredindo-o verbal ou fisicamente.”

Desconstruindo mitos

A pesquisadora adiantou que a organização Palavras Curam o Mundo está produzindo um filme, intitulado Santos Silenciados. A obra, que está em fase de finalização, desconstrói os mitos que estão por trás dos preconceitos contra as religiões de matriz africana, que muitos consideram demoníacas ou que matam animais por maldade. “Desde o colonialismo, as pessoas foram evoluindo com esses mitos e não foram informadas de que isso não é verdade. Então, a gente precisa fazer um trabalho de educação pela paz. E é o que a gente faz”.

O documentário está sendo produzido em parceria com alunos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

A ONG criada por Beatriz foi responsável o primeiro Mapa do Ódio, divulgado no ano passado, com números de crimes motivados por preconceito racial, religioso, de gênero ou sexualidade no país. “Eu considero o Mapa do Ódio um trabalho muito importante porque, no Brasil, a gente não tem um documento que mostre a quantidade de crimes oficiais e crimes de ódio”.

Segundo Beatriz, o crime de ódio é um conceito ainda pouco falado no Brasil, e muitas delegacias registram intolerância religiosa, por exemplo, como crime racial e não de ódio. Ela disse que o mapa expôs esse problema e mostrou um número gritante de crimes de ódio no Brasil.

A ONG já está elaborando a segunda edição do documento, com base em dados oficiais coletados pelas secretarias de Segurança no ano passado, embora não tenha patrocínio para fazer uma versão impressa.

Beatriz enfatiza que não se pode combater uma coisa que não é conhecida. “A gente sabe que existe no país um problema grave com relação à homofobia, sabe que as religões de matriz afro têm sido atacadas, mas não tem a dimensão do problema”. Por isso, ela considera o mapa fundamental para que os grupos que lutam pela liberdade civil, pela igualdade racial e de gênero, se apropriem desse documento e o usem como uma ferramenta para gerar mudanças nas políticas públicas do Brasil.

Ação global

O trabalho de desconstrução dos discursos de ódio tem enfoque global, não é feito somente no Brasil, ressalta Beatriz. “É um problema mundial, e a gente tem desenvolvido campanhas, estratégias de combate a diferentes tipos de extremismo no mundo..

No filme Behind the Scarf (Por trás do véu), por exemplo, a ONG desconstruiu a ideia de que a mulher muçulmana é submissa, não tem voz e é obrigada a usar véu. Beatriz admite que, em alguns países, o véu é obrigatório e opressor, embora não seja uma realidade na maioria dos países muçulmanos. “Na grande maioria, as mulheres usam o véu por opção. Só que é mais um mito que veio ao longo do tempo”, diz a pesquisadora. Ela destaca outro mito, segundo o qual a religião muçulmana é violenta e associada ao terrorismo e diz que, em entrevista com um muçulmano no Reino Unido “quebrou” essa crença.

Beatriz, que continua morando no Reino Unido, reforça que as ações desenvolvidas por sua ONG no Brasil e em todo mundo têm foco em diferentes tipos de extremismo. Segundo a pesquisadora fluminese, existem muitas outras ONGs desenvolvendo conteúdo de combate ao ódio e ao extremismo na Europa e nos Estados Unidos, onde “vem crescendo essa presença”. No Brasil, porém, isso é incipiente, disse.

De acordo com a jornalista, no Brasil, a única ONG que produz realmente conteúdo de combate ao discurso de ódio e ao extremismo é a Words Heal the World. “Tem outras ONGs fazendo trabalho de promo;ção da empatia, da paz, da igualdade social, da justiça e do combate ao racismo. Tem tudo isso, mas só que a gente atua em um nicho específico do combate ao ódio e ao extremismo. Para o Words Heal the World, racismo, homofobia, xenofobia, intolerância religiosa são extremismo. E é importante usar essa palavra porque ela dói no ouvido.”

O fato de haver jovens trabalhando na desconstrução dos discursos de ódio foi um diferencial que pesou para a premiação da ONG pelo Fórum Mundial da Paz de Luxemburgo.