A suprema maioria dos brasileiros acredita que as escolas fundamentais e médias do País, sobretudo as públicas, reprovam pouco. E que dar bomba é positivo em qualquer circunstância, para o aluno aprender também a viver. Nesta entrevista, a educadora, socióloga e escritora Maria Helena Guimarães de Castro prova que as teses estão equivocadas. “A reprovação em larga escala é um problema antigo do País. Quanto mais bomba, menos o aluno aprende. Reprovar demais só atrapalha”. Mestre em Ciências Sociais, professora aposentada da Unicamp, ex-presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), ex-secretária- executiva do Ministério da Educação (MEC) e uma das idealizadoras do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), Maria Helena revela situações em que as repetições em excesso geram atraso educacional, prejudicam os alunos e retardam o desenvolvimento do País. É contrária ao homeschooling, a educação doméstica, como método de massa, e às restrições de atuação profissional impostas aos não aprovados em exames como o da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). “Essas avaliações não pertencem ao sistema educacional. A chancela cabe ao MEC. Se o curso de Direito ou outro qualquer for ruim, deve ser fechado”. E alerta: “Não sou contra reprovar aluno vagabundo, que mata aula, não estuda nem faz tarefas e trabalhos. Esse merece bomba”.

Quanto mais reprovação, menos aprendizado. É verdade?
Devo esclarecer que não sou contra reprovar aluno vagabundo – e, como bem sabemos, eles infelizmente existem. Quem deixa de aprender porque mata aula, não estuda nem faz tarefas e trabalhos merece reprovação. Feita a ressalva, sim, é verdade. A questão levantada historicamente por vários especialistas, entre os quais me incluo, envolve crianças, adolescentes e jovens que frequentam regularmente, durante o ano, as escolas públicas, que abrigam 85% dos alunos da educação básica, se esforçam, dão o máximo nas provas, tarefas e trabalhos, mas ainda assim apresentam desempenho insuficiente. Por questões cognitivas, circunstâncias sociais ou individuais, pressões externas ou tudo isso junto. O que adianta submeter esses alunos, no ano seguinte, aos mesmos métodos, materiais didáticos e professores sem treinamento para atendê-los? Se os problemas não foram mapeados no ano anterior, o que acontecerá? Claro: eles passarão outro ano sem aprender.

Isso vale para todo o sistema?
Os estudos que mostram os índices exagerados de reprovação envolvem majoritariamente as escolas públicas. As particulares, com apenas 15%, estão em universo diferente, por terem recursos na unidade para investir em programas de recuperação. Mas essas também necessitam acompanhar a trajetória dos alunos durante o ano letivo, para identificar desequilíbrios.

O Brasil dá mesmo muita bomba?
Sim — e há muito tempo. Na década de 1940, o educador, jurista e intelectual Anísio Teixeira, que dá nome ao Inep, identificou índices excessivos de reprovação, próximos dos 60%, na primeira série do então ensino primário, hoje fundamental. Costumava dizer que o problema não era a falta de vaga, e sim a alta repetência. Esse percentual se manteve até o início dos anos 1980. Depois, o problema passou a ser apontado como atraso educacional pelos pesquisadores Sérgio Costa Ribeiro, no IBGE, Ruben Klein, no CNPQ. Crianças eram reprovadas cinco, seis, até sete vezes nos primeiros anos, algumas na alfabetização, e não ingressavam no fundamental. Darcy Ribeiro chamou atenção para a mesma coisa. O problema nem é a repetência em si, como conceito, mas o exagero, a decisão indiscriminada e o fato desses alunos voltarem, no ano seguinte, para o mesmo professor sem treinamento para identificar seu problema, a mesma metodologia e o mesmo material didático que não funcionaram.

O Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) também detectou o problema, não?
Exato. No primeiro, em 1995, alunos reprovados ao menos duas vezes tiveram desempenho pior em língua portuguesa e matemática no quinto e nono anos do fundamental e no terceiro médio. Isso foi reproduzido nas edições posteriores. O Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes, o Pisa, realizado pelos países da OCDE com estudantes do fundamental, mostra a mesma realidade desde a primeira participação do Brasil, em 2000: alunos reprovados têm desempenho pior em leitura, matemática e ciências. Um relatório feito pelo Pisa em 2018 mostrou que 34% dos estudantes brasileiros de 15 anos haviam repetido ao menos uma vez. O Brasil ficou em quarto lugar em reprovação entre 80 países. Só deu menos bomba do que Marrocos, Líbano e Colômbia. Tudo isso gera problemas sociais.

“Brasil reprova demais e isso só atrapalha”, diz educadora Maria Helena Guimarães de Castro
“Ao contrário do que pensam, o exagero nas reprovações ocorre há décadas. Nos anos 1940, estudo de Anísio Teixeira (foto) identificou 60% no primeiro ano primário, hoje fundamental” (Crédito:Divulgação )

Quais?
De acordo com o censo de 2023, o País tem 16% de índice de distorção entre idade e série já no 6º ano fundamental. E 24%, praticamente um aluno a cada quatro, no primeiro ano do médio. São alunos reprovados ao menos duas vezes. É muita coisa, mas era pior. Em 2006, o percentual era de 48%. Isso contribui decisivamente para o desemprego entre jovens de 18 a 29 anos e o aumento da legião nem-nem — nem estuda, nem trabalha. Na evasão escolar, a maior parte começa a abandonar a escola entre 13 e 14 anos, quase sempre com apoio dos pais, para trabalhar, fazer bico, cuidar da casa ou de irmãos mais novos, esses problemas sociais. O excesso de repetência só estimula essa evasão. A escola brasileira precisa ser boa e pouco hostil para reter essas crianças, adolescentes e jovens.

O que fazer?
É preciso combinar recursos. Primeiro, identificar alunos com aprendizado insuficiente e implantar avaliações formativas, periódicas, durante o ano. Para eles e os professores. É preciso capacitar os professores para implantarem metodologia adequada à recuperação dos alunos com déficit de aprendizado durante o mesmo ano letivo, materiais adequados a cada caso, para evitar as repetições em massa. Algumas redes públicas, entre elas as de Pernambuco, Ceará e São Paulo, conseguem fazer isso em maior ou menor grau. A do Rio Grande do Sul tinha bons resultados antes da tragédia. Veremos após a recuperação. Algumas ONGs e institutos, como o Ayrton Senna, oferecem projetos eficazes de capacitação de professores, para ajudá-los a trabalhar com os desníveis dos alunos nas turmas. O Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação, o CAEd, também faz um bom trabalho na área. O problema é que praticamente 80% da oferta escolar do primeiro ao quinto ano fundamental, hoje, é feita em escolas públicas de municípios, muitas carentes de recursos e sem acesso a projetos de capacitação. Aluno mal alfabetizado não caminha. O País precisa resolver o gargalo ou terá o futuro comprometido.

A senhora defende o turno integral?
Sim, mas isso depende de vários aspectos. Há um longo caminho a percorrer. O termo turno integral é invenção brasileira. Nos países bem posicionados, o aluno fica na escola de sete a oito horas por dia. Não existe a divisão – os turnos são integrais. Os das escolas da Europa, Chile, Uruguai, México e Argentina são de, no mínimo, sete horas diárias. O Brasil implantou as quatro horas nos anos 1970, no governo militar. Só o primário era obrigatório. Com a Lei 5692, que tornou obrigatórios os oito anos do fundamental, as escolas passaram a ter dois e até três turnos de quatro horas, para dar conta da demanda.

A divisão foi prejudicial?
Em termos de resultados educacionais, sim. Países africanos passaram pelo mesmo problema. Depois, os estados do Paraná, Santa Catarina e Minas Gerais adotaram cinco horas no ensino médio. Em São Paulo, o ex-governador Mário Covas optou pelo mesmo período em todos os níveis. O percentual de turno integral no ensino médio público é de 25% no País e 27% no Estado de São Paulo. A do fundamental é menor, 14%, ou algo próximo disso. O problema é que grande parte das escolas ainda precisa dos dois turnos para atender à demanda. Será necessário expandir a estrutura. O Inep tem estudo e profissionais que poderão ajudar a conduzir a ampliação, mas precisaremos ter decisão política e investimento.

A senhora é a favor do homeschooling, a educação domiciliar?
A não ser em casos pontuais, desaprovo. Manifestei-me contra, no Congresso, durante o governo Bolsonaro, em 2019, quando ocupava a presidência do Conselho Nacional de Educação, o CNE. Período complicado… (risos). A escola é espaço de preparação e formação da cidadania. Não é possível formar um cidadão pleno sem sociabilidade e interação social. É o local onde há conhecimento das diferenças, pluralismo e distanciamento de preconceitos. Mesmo na Educação Especial, que costuma ser usada por defensores do modelo para exaltá-lo, pesquisas mostram que o melhor caminho é o do ambiente escolar. Obviamente há exceções. Ambientes de guerra ou conflito, famílias isoladas e menores em deslocamento constante são exemplos. Fora isso, escola para todos.

“Brasil reprova demais e isso só atrapalha”, diz educadora Maria Helena Guimarães de Castro
“A não ser em casos especiais, pontuais, sou contra o homeschooling. A escola é espaço de formação da cidadania. Não é possível formar um cidadão pleno sem sociabilidade e interação” (Crédito: istockphotos)

A senhora ajudou a idealizar o Enem. Como está vendo a ferramenta?
O projeto é valorizado pelos brasileiros, mas precisa ser atualizado. Até mesmo para se adaptar aos itinerários formativos flexíveis ou técnico-profissionais da Nova Lei do Ensino Médio. O modelo do Enem, com questões de múltipla escolha, está parado no tempo. Exames semelhantes no mundo, como o americano e o chinês, o maior do mundo, passaram por mudanças recentes. Entre as mais importantes está a inclusão de questões abertas. Aqui temos redação, mas não é suficiente. Os alunos precisam exibir conhecimento também nas questões, para tornar a avaliação mais abrangente e precisa. O Enem ainda é feito a lápis, caneta e papel. Países bem posicionados nos rankings educacionais adotaram a prova digital. Assim evitaremos aquela parafernália das Forças Armadas transportando provas pelo País e reforçaremos a segurança. O Enem deveria evoluir, em conceito, para algo semelhante ao Pisa. Adotar avaliação em plataforma digital, que indique competências do aluno. Mas tenho consciência de que uma mudança desse porte virá aos poucos.

Algumas ordens profissionais condicionam a liberação de funções para formandos à aprovação em provas aplicadas por elas. O caso mais conhecido é o da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que não dá aos diplomados em Direito a autorização para advogar enquanto eles não forem aprovados em seu exame. Acha isso correto?
Não. Definitivamente. Exames como o da OAB são avaliações externas ao sistema educacional. A instituição oficial de fiscalização de cursos e faculdades e chancela de diplomas é o MEC. O ministério possui mecanismos e o dever de fiscalizar os cursos de Direito e qualquer outro. Se há cursos e faculdades ruins de Direito, e de qualquer outra profissão, que se feche essas unidades com coragem. Avaliações paralelas não devem, nunca, ser a saída. A solução é lutar por melhoria da qualidade do ensino, fiscalização rigorosa e fechamento de instituições ineficientes. Isso vale para qualquer universidade, faculdade ou curso.