Leia em voz alta a palavra estupro. ES-TU-PRO. Soa desconfortável, não? Como se a pronúncia fosse estranha? Sinto lhe dizer que a violência começa aí mesmo, no momento em que dizer as sete letras é repulsivo. Imagine quando a palavra não é dita e, sim, o resultado de uma violência.

Há quem classifique o estupro como o pior dos crimes. Eu vou além. Não acredito que seja somente um ato inconstitucional, previsto no Artigo 213 do Código Penal: é a transformação de um corpo íntegro em frangalhos.

Por mais repulsivo que seja esse tipo de violência, ele é recorrente. A cada oito minutos uma mulher é estuprada no Brasil – e o número tende a ser ainda maior, já que muitas vítimas escolhem o silêncio. Por quê? Para elas, estar em delegacias e ter de provar na pele – e na alma – o crime sofrido é mais uma violência. E é: durante o processo deixam de serem vítimas para serem as acusadas, a terem de provar em mínimos detalhes a violência sofrida.

Se digo que estupros (permito-me não utilizar a palavra abuso sexual em nenhum momento deste texto, não quero relativilizá-los) acontecem a cada oito minutos no País, onde estão as pessoas – em sua grande maioria homens – que cometem esses crimes? Infelizmente, em rede nacional.

No fim de semana, o cantor Nego do Borel foi expulso do reality show “A Fazenda” depois de ter tentado forçar um ato sexual com a outra participante, a modelo Dayane Mello, que estava nitidamente embriagada e sem condição alguma de se defender – ainda assim, ela disse (e está gravado) que gostaria que Nego do Borel se afastasse. Ele não se afastou. A agarrou em seus braços e a fez dormir ao seu lado.

Nego foi expulso – e chorou. Gravou um vídeo em suas redes sociais dizendo que estavam destruindo a sua vida, que uma “pessoinha” (no caso, a sua ex-noiva, Duda Reis, que o acusou de estupro de vulnerável e violência psicológica) teria sido a culpada de sua expulsão.

Retomemos a história: Nego do Borel é acusado de estupro de vulnerável e violência psicológica pela sua ex-noiva, Duda Reis, ainda assim é convidado a participar de um reality show, do qual é expulso, também acusado de estupro de vulnerável, e a grande culpada pelo rumo que ele escolheu de sua vida é uma mulher, sua ex-companheira? Não há defesa.

A história, como bem dita, é cíclica. Repete-se caso o erro não seja arrancado pela raiz – o que seria algo simples se homens passassem a enxergar mulheres como pessoas íntegras e mantivessem o mesmo respeito que têm pelos seus pares por elas. E entendessem que qualquer tentativa de cunho sexual com uma mulher sem condições físicas de escolha (seja ela dormindo, bêbada, drogada, e afins), é, sim, estupro. A inversão de valores e equidade de gênero só será possível quando homens entrarem nessa luta com as mulheres. Quando, independentemente do grau de amizade ou parentesco, um homem for repreendido por outro homem no momento em que tenta diminuir um estupro. Ou então: que em cenas deploráveis como a que passou Dayane em A Fazenda, exista um homem que intercepte o ato. E ponto.

Como o machismo faz com que homens, muitas vezes, escutem, leiam e entendam somente homens, trago um trecho do livro “Homens justos: do patriarcado até as novas masculinidades” (editora Todavia), do historiador francês Ivan Jablonka: “Qualquer que seja a interpretação dada à frase ‘os homens nascem e são livres e iguais’, não podemos deixar de nos perguntar: e as mulheres? O fim dos privilégios implica o fim dos privilégios dos homens. A igualdade de direitos abarca a igualdade dos sexos”. São os pequenos detalhes do dia a dia que fazem a caminhada rumo ao estupro.

Homens sente-se no direito de estuprar mulheres porque não as respeitam ao longo de suas vidas. Porque só têm ídolos masculinos. Porque só escutam o que os homens – e o machismo – têm a dizer. Porque acreditam que o fato de terem mães, avós e irmãs os fazem menos machistas – o que não é verdade, afinal, as mulheres têm de ser respeitadas independente da existência de graus de parentesco. Porque não se manifestam quando amigos, pais ou tios diminuem o trabalho de uma mulher só pelo fato de ela ser uma mulher. Porque pais dizem as suas filhas: “não use roupas curtas, isso chama atenção dos homens”. Porque não dizem aos seus filhos: “respeitem suas colegas, independente da roupas que elas estejam usando”.

A lista é infinita, mas recorrente. Afinal, o machismo segue acontecendo nos quatro cantos do mundo. Nas esquinas. Nos escritórios. Em universidades. Dentro de inúmeras casas. E até em reality shows. Não adianta mulheres gritarem sozinhas. Será um eco em vão. O grito precisa ser em uníssono. União independente do gênero com uma única finalidade: equidade. “A verdade é que nenhum de nós pode ser livre até que todos sejam livres”, já disse Maya Angelou.

Se, por alguma razão, você ainda não se mobilizou com a violência do estupro (e segue dizendo essa palavra em voz alta sem em nada lhe incomodar), trago o trecho de um outro livro, “Vista chinesa”, de Tatiana Salem Levy: “Quando me dei conta, tentava com a bucha arrancar a pele, aquela camada impura, tudo o que eu queria era uma pele nova, a gente aprende desde cedo que a pele se regenera, ela descama e renasce, é só pensar em quando a gente toma sol ou faz esfoliação. Então eu podia, era só esfregar com força que o mal iria embora e eu seria eu de novo, inteira”. O relato é da personagem, Júlia, horas depois de ser estuprada, mas poderia ser de Dayane, ou de qualquer outra mulher no mundo. Estupro é estupro. E precisamos falar sobre isso.