A tristeza de ver o ator Paulo Gustavo, conhecido por interpretar uma alegre dona de casa com todas as suas qualidades e defeitos, perder a vida para a Covid-19 cinco dias antes da celebração do Dia das Mães parece uma daquelas ironias que geralmente só acontecem no cinema. Mas tal como na vida real, o ator, ou a eterna Dona Hermínia, como ficou conhecido, morreu, aos 42 anos, de complicações em decorrência de uma embolia sanguínea causada pelo coronavírus. O comediante morreu de uma doença para a qual já existe vacina, que o go-verno brasileiro se recusou a comprar quando teve chance.

“Meu filho, meu filho, obrigada por você ter me escolhido para ser sua mãe” Déa Lúcia, mãe de Paulo Gustavo (Crédito:Divulgação)

Da mesma forma, o governo se eximiu de promover qualquer tipo de ação preventiva, de estimular o isolamento social e de dar recomendações baseadas na ciência para o combate de uma pandemia que não deveria tirar a vida de uma pessoa saudável, jovem e sem comorbidades, como era o caso do ator. Dez dias antes de ir para o hospital, em 13 de março, escreveu em suas redes sociais: “Cadê a vacina, gente?” Acabou se tornando a mais notável vítima fatal da inoperância do governo Jair Bolsonaro.

Paulo Gustavo é um símbolo de um País que parece ter ficado para trás, onde existia alegria, alto astral, cordialidade, algum respeito pelo próximo e onde a vida era minimamente valorizada. A interrupção de seu sorriso é o desalento de todo o Brasil. A morte do ídolo representa a impotência do povo diante de uma catástrofe sem precedentes. Mostra que a pandemia pode atingir avassaladoramente qualquer um de nós. Gustavo, que se tornou uma espécie de parente próximo de todos, foi tragado por uma doença que já pode ser controlada, como mostram outros países, e de um governo que promove o negacionismo e não cuida de seus cidadãos. Oito em cada dez brasileiros conhecem alguém que sucumbiu à Covid-19, parentes, amigos, vizinhos, pessoas próximas. Agora se foi um homem familiar a todos, uma unanimidade, um polo de identificação. Nenhum outro país perdeu para a Covid-19 dessa maneira injusta um ídolo da magnitude e da juventude de Paulo Gustavo.

Após passar mais de 50 dias internado, ele não resistiu e comoveu a Nação na noite de terça-feira, 4, quando a família anunciou seu falecimento. Gustavo foi um dos 3.024 brasileiros que morreram naquele dia. Deixa o marido, o médico dermatologista Thales Bretas, com quem teve um relacionamento de sete anos, e os dois filhos, Romeu e Gael. Com um ano e oito meses, os bebês nasceram nos Estados Unidos, com ajuda de barriga de aluguel, sendo que Gael possui material genético do ator e Romeu, de Thales. Deixa também a mãe, Déa Lúcia, convertida em mãe arquetípica nos seus personagens consagrados, o pai Júlio Márcio, e a irmã, Juliana Amaral. Gustavo e Déa Lúcia protagonizaram juntos o espetáculo “Filho da mãe”, em 2019. Na ocasião, ele declarou que “o musical é uma grande homenagem à minha mãe e a todas as mulheres guerreiras que se viram nos trinta para manter a família”. “Quando a gente era criança, a vida da minha mãe foi luta atrás de luta”, completou.

Comoção nacional

Trabalhador, carismático e talentoso, Gustavo era uma unanimidade no meio artístico e foi acolhido na casa dos brasileiros com seu humor moderno e afinado com os novos tempos. Suas comédias de costumes se converteram, naturalmente, em enormes sucessos de bilheteria e seduziram um público imenso e diversificado. A comoção causada pela sua morte foi tamanha que na quarta-feira, 5, às 20 horas, foi marcado pelo movimento 342 Artes um “aplausaço” nacional para homenageá-lo. Em todo o País, a população saiu às janelas para aplaudir e exaltar a memória do ator. Nas mídias sociais, foram vários dias de comoção e revolta contra uma morte estúpida que poderia ter sido evitada. Niterói, sua cidade natal, decretou três dias de luto oficial. Gustavo foi velado no Theatro Municipal do Rio numa cerimônia restrita a familiares. Celebridades e profissionais do mundo do espetáculo lamentaram a perda de Gustavo, que dedicou a vida a fazer amigos. Seu discurso era como um raio para espantar o mau humor e sua alegria se tornou imortal.

Amigo dos tempos da escola de teatro, o humorista Fábio Porchat, chorou profundamente a morte. “O mundo perde um comediante gigante. A pessoa mais engraçada que eu já vi é o Paulo. Foi e é porque seu legado e sua memória ficam. E meu amor por ele também. Tenho a honra de dizer que estudei, me formei e fiz minha primeira peça de teatro ao seu lado. Que dor”, disse Porchat. Já o cantor Caetano Veloso criticou o governo. “Paulo Gustavo já deveria ter sido vacinado num país que tivesse agido decentemente”, afirmou Caetano, que considera Gustavo “a expressão da alegria brasileira”. Também duro foi o escritor Paulo Coelho, que culpou Bolsonaro e os negacionistas pelo falecimento de Gustavo. “Assassinos de Paulo Gustavo: quem dizia ‘é só uma gripezinha’, ‘não passa de 200 mortes’, ‘cloroquina resolve’, ‘gente morre todo dia’, ‘lockdown destrói o país’, máscara nos faz respirar ar viciado’, ‘eu obedeço o comandante’. E por aí vai. Canalhas da pior espécie”, atacou. A cantora Beyoncé, de quem o ator era fã, transmitiu sua singela mensagem: “Paulo Gustavo, descanse em paz.”

Gustavo era uma referência na luta por direitos e visibilidade da comunidade LGBTQIA+ e fazia um trabalho dedicado a esse respeito. Sensato e bem articulado, contribuiu enormemente para combater o preconceito e normalizar a imagem dessa comunidade junto a toda a sociedade. O marido e os filhos fazem até uma participação especial em um dos filmes de Gustavo, que sempre foi vocal sobre sua sexualidade e desejo de constituir família. Fama e graciosidade até pareceriam impossível em um país homofóbico como o Brasil, mas, ao criar personagens originais, ele conseguiu com seu humor suburbano conquistar milhões de fãs. O terceiro longa da sua franquia “Minha mãe é uma peça” teve a maior bilheteria da história do cinema brasileiro. Ou seja, Paulo Gustavo foi visto e, de tão visto, sua ausência será fortemente sentida. Até Bolsonaro, considerado por Gustavo “um cara extremamente agressivo com mulheres, homofóbico e racista”, lhe prestou condolências.

FAMÍLIA Paulo com o marido, Thales Bretas, e os dois filhos, Gael e Romeu: futuro interrompido (Crédito:Divulgação)

Para a população, porém, não restam dúvidas de que o presidente é um dos principais responsáveis pela perda irreparável. Um levantamento que usa inteligência artificial para identificar mudanças comportamentais, feito no Twitter pela empresa de dados Ap Exata, em parceria com o banco ModalMais, mostrou que entre terça-feira, dia da morte, e quarta-feira, 5, o sentimento de tristeza na rede social, refletindo o que acontecia em toda a sociedade, cresceu 10 pontos percentuais, de 33% para 43%. O mesmo instituto, que analisa o comportamento em 145 cidades brasileiras desde o início do atual governo, mostrou que as menções negativas a Jair Bolsonaro cresceram de 67% para 78%. Os internautas tendem a culpar o governo federal pela morte de Gustavo, devido ao atraso da campanha de vacinação. De alguma maneira, o comediante tende a se tornar um mártir da pandemia, um ponto de inflexão na onda de caos em que se transformou a gestão sanitária no Brasil.

HOMENAGEM Fãs promovem “aplausaço” na praia de Icaraí, em Niterói, cidade natal do ator: despedida (Crédito:Alexandre Cassiano)

Além de um grande artista, Gustavo era um homem generoso e solidário. O padre Julio Lancellotti, benfeitor dos moradores de rua de São Paulo, contou que Gustavo doou um total de R$ 1,5 milhão para a construção de uma unidade médica especializada no tratamento de câncer. O valor foi doado para as Obras Sociais Irmã Dulce (OSID). “Muita gente não sabe, mas o ator Paulo Gustavo era um grande benemérito da OSID”, disse padre Julio. Pelas mídias sociais, a entidade lamentou a morte do ator e agradeceu pelas suas contribuições. “Nunca esqueceremos de vossa dedicação aos pacientes da instituição, exemplificada na unidade que construíste para atendimento às pessoas em tratamento do câncer”, declarou. Sua amiga e diretora de “Minha mãe é uma peça 3”, Susana Garcia, contou que no ano passado, Gustavo depositou R$ 1 mil por mês, durante três meses, para 120 pessoas que trabalharam nos seus filmes. O ator fez também uma doação de R$ 500 mil para compra de oxigênio durante a crise em Manaus. “No hospital, antes de ser intubado, você me disse que estava sentindo muita falta de ar, mesmo com cateter de oxigênio, e que você estava feliz de ter comprado oxigênio para as pessoas”, lembrou Susana. Em dezembro de 2020, Gustavo gravou uma mensagem de Ano Novo tocante em que discorre sobre os efeitos da pandemia. “Ai gente, tanta coisa eu queria dizer antes de ir embora e eu vou tentar. Primeiro vamos combinar que esse ano serviu para mostrar que a gente não vive sem a graça, sem o humor, o humor salva, transforma, alivia, cura, traz esperança para a vida da gente. Essa pandemia também deixou bem clara a importância total da arte nas nossas vidas”, disse.“Fico muito feliz e orgulhoso de ser artista e mais ainda da comédia ser tão forte em mim. Eu faço palhaçada, você ri, eu fico com o coração preenchido aqui. Me sinto realizado de estar conseguindo te fazer feliz. Rir é um ato de resistência. A gente agora usa essa máscara chata para proteger o rosto desse vírus e infelizmente essa máscara esconde algo muito precioso para nós brasileiros: o sorriso. Ele está tapado, tem que estar tapado, mas ele existe e não vai deixar de existir. A gente não vai deixar de sorrir, não vai deixar de ter esperança”. Como escreveu o escritor Oswald de Andrade no seu Manifesto Antropófago, “a alegria é a verdadeira prova dos nove”. Se existe alguma forma de libertação de uma situação tão cruel como a atual é através dela. Embora seja um grande desafio, a lição deixada pelo mestre Paulo Gustavo não pode ser esquecida.

Que decepção: descobrimos que sorrisos não têm o poder de curar. ‘Sorrir é o melhor remédio’ não se aplica à Covid-19. Se a risada nos salvasse, Paulo Gustavo seria eterno

“Rir é um ato de resistência”

Por Felipe Machado

Chorar a morte de um humorista é um paradoxo. Nada mais contraditório do que olhar para o rosto de Paulo Gustavo, um dos brasileiros mais engraçados de todos os tempos, e sentir tristeza. Algo está errado. Algo está muito errado com o Brasil.

Mazzaropi, Oscarito, Chico Anysio, Renato Aragão. Sempre fomos um celeiro de grandes e divertidos artistas. Não há nada mais brasileiro que o sorriso. É uma característica física do nosso povo que se destacava até no exterior. “Quem está rindo alto?”, perguntavam os estrangeiros. “Só pode ser um brasileiro”, respondíamos, com orgulho. Essa semana sofremos uma decepção: descobrimos que sorrisos não têm o poder de curar. O ditado “sorrir é o melhor remédio” não se aplica à Covid-19. Se a risada nos salvasse, Paulo Gustavo seria eterno. Ele nos fez dar bilhões de gargalhadas desde 2004, quando estreou no teatro com “Surto” e apresentou pela primeira vez ao País sua personagem mais conhecida: Dona Hermínia, inspirada na própria mãe, Déa Lúcia. O espetáculo seguinte, “Infraturas”, dessa vez com texto do amigo Fábio Porchat, foi fracasso de público, mas nenhum dos dois desanimou — sorte a nossa.

Divulgação

Em 2006, Paulo Gustavo foi para o tudo ou nada: a família pegou um empréstimo e bancou o espetáculo “Minha Mãe é uma Peça”, mais uma vez com Dona Hermínia. Ironicamente, a estreia foi no mesmo dia em que Paulo morreu: 4 de maio. Os 120 lugares do teatro logo ficaram pequenos para abrigar a fila que se aglomerava na porta, todas as noites. Ali, o ator compreendeu seu destino. Em quatro anos, foi visto por quase 500 mil pessoas. Para efeito de comparação, é como se quase todo mundo que viu a peça tivesse morrido de Covid. O exemplo grotesco é
só uma mostra do que virou o Brasil.

Tecnicamente, Paulo Gustavo é o humorista perfeito: tem uma presença de palco vigorosa, a energia e o carisma de uma estrela; tem um rosto neutro, não é bonito nem feio, ou seja, pode encarnar qualquer personagem; tem um raciocínio rápido, cortante; tem um timing exato. Comédia é timing — o resto é roteiro. O humorista talentoso tem o tempo da punch line, aquela frase matadora que define a piada e torna o riso inevitável. Paulo Gustavo não tinha isso: ele era isso.

Logo veio o convite para a TV. Fez pontas aqui e ali, em novelas e no “Sítio do Picapau Amarelo”. Em 2011 teve o primeiro papel de destaque, o cabelereiro Renée na série “Divã”, na TV Globo. Ganhou carta branca no programa “220 Volts”, no Multishow, sucesso com cinco temporadas. “Divã” foi parar no cinema ­— e aí ele descobriu uma tela do tamanho do seu talento. “Minha Mãe é uma Peça” se desdobrou em três filmes, a franquia mais bem sucedida da história do cinema brasileiro: foram mais de 25 milhões de espectadores. De olho na carreira internacional, assinou contrato com a Amazon a partir de 2022. Não deu tempo. Nem todo o dinheiro, porém, foi suficiente para comprar sua saúde. Bastaria uma simples vacina. Quando nos livrarmos desse governo e os sorrisos voltarem a valer alguma coisa nesse País, seremos obrigados a pagar a dívida que teremos eternamente com Paulo Gustavo ­— e com nós mesmos.