"A Natureza das Coisas Invisíveis" e "Hora do Recreio" são alguns dos filmes brasileiros no festival conduzidos pelo ponto de vista dos mais jovens, tratando desde o sobrenatural à crueza da violência nas periferias.O berlinense leva cinema a sério, desde criancinha. Crescer cercado por vários cinemas de rua, sem falar das várias exibições ao ar livre no verão, tornam o gosto pela coisa quase natural. No Festival de Cinema de Berlim, a Berlinale, crianças e jovens têm lugar não só como expectadores, mas integram o júri da seção Generation, categoria voltada para público e temática juvenis.
Neste ano, a Generation selecionou 43 produções, sendo cinco brasileiras – desempenho em número que só perde para a França, com seis obras em exibição nessa categoria, e empata com o Canadá. O filme A Natureza das Coisas Invisíveis, de Rafaela Camelo, abriu a seção, na sexta-feira (14/02). O outro longa na disputa é Hora do Recreio, de Lúcia Murat.
Também fazem parte da mostra os curtas Arame Farpado, de Gustavo de Carvalho, e Pôr do Sol Sobre a América, uma coprodução com Chile e Colômbia. A série de TV De Menor também está entre as obras que passarão pelo crivo do júri infantojuvenil.
Há 12 produções brasileiras na Berlinale deste ano, distribuídas em quase todas as seções, incluindo a mostra competitiva principal, com o longa O Último Azul.
Mistério e afeto
"O que se passa no filme acontece na vida real?", perguntou um dos jovens expectadores após a sessão de abertura de A Natureza das Coisas Invisíveis, que teve dublagem em alemão.
"Pensei em trazer a perspectiva de duas crianças sobre a morte, a partir da imaginação e da fantasia. Não que fosse um delírio ou que fosse sempre um sonho, mas que simplesmente fosse a perspectiva das crianças sobre esse tema, uma forma de ver o mundo", definiu a diretora, a brasiliense Rafaela Camelo, que participa pela segunda vez da Berlinale.
O longa apresenta duas meninas de dez anos que se conhecem num hospital durante as férias escolares. A mãe de Glória é enfermeira e não tem onde deixar a filha, por isso a leva para o trabalho. A bisavó de Sofia sofreu uma queda, e a menina foi quem a socorreu e acompanhou a internação.
Do improvável cenário surge uma amizade que navega por caixas de pertences de pessoas que já se foram, brincadeiras na ala dos idosos hospitalizados e histórias contadas como um sopro do além, como a de que há corpos de trabalhadores que morreram na construção de Brasília concretados nas paredes de monumentos.
As mães decidem unir forças e levar a bisavó Francisca, curandeira que sofre do mal de Alzheimer, para passar seus últimos dias em casa, no interior de Goiás. Nesse ambiente, salpicado de bibelôs, santos e rituais, as meninas vivem a liberdade dos quintais e encaram os mistérios da morte, enquanto fim da vida e outras dimensões simbólicas.
"O que vocês aprenderam no filme?", perguntou outra criança da plateia. "Aprendi muito a questão do respeito, da gente ver as coisas não só de uma maneira, enxergar os dois lados, ver a perspectiva de cada um", respondeu a atriz Laura Brandão, que interpreta Glória, dando as mãos para sua parceira de tela, Serena.
"Acho que uma das principais coisas que aprendi é como é possível se fazer cinema com afeto, com escuta e com respeito. Eu faço cinema há 15 anos, e foi o primeiro filme em que atuei dirigido por uma mulher e com equipe majoritariamente feminina", observou a atriz Larissa Mauro, que encarna a mãe enfermeira.
Abordagem documental e ficcional
No caso de Hora do Recreio, a dúvida que fica é de outra ordem – até onde vai o documentário e o que é encenação? A diretora carioca Lúcia Murat levou a questão para os jovens que participam do longa. "É um documentário, porque é a realidade", concluem.
O filme escancara os problemas vividos por adolescentes de 14 a 19 anos de quatro escolas de diferentes comunidades e bairros do Rio de Janeiro e suas famílias, que passam por situações de violência contra mulher, racismo, transfobia e truculência de ações policiais.
Além dos relatos crus e comoventes em sala de aula – a própria equipe aparece chorando num momento –, a diretora adicionou ao filme outras linguagens, como performance, artes plásticas, rap e uma encenação do livro Clara dos Anjos, de Lima Barreto, escrito no início dos anos 1920.
"Eu fiquei muito, muito feliz com a capacidade deles de falarem por suas próprias mentes. Foi muito corajoso", diz Murat, que participa pela terceira vez no Festival de Cinema de Berlim.
Os percalços para gravar o filme, como a proibição do governo do estado do Rio para filmar dentro de uma escola de ensino médio ou o cancelamento das aulas em outra escola no Morro do Alemão, devido a uma ação policial, são levados para dentro da obra e justificam as escolhas de linguagem.
A produção buscou os personagens em três projetos teatrais na periferia do Rio: o grupo Nós do Morro, no Vidigal; o grupo Vozes, no Cantagalo; e o Instituto Arteiros, na Cidade de Deus.
Cria do grupo Vozes, a atriz Brenda Rodrigues Viveiros, que aparece como a aluna que interpreta Clara dos Anjos, compartilhou com o público, após uma das exibições, como lidou com o estilo híbrido do documentário.
"Foi uma construção maravilhosa, até para eu conseguir distinguir no set quando eu estava como atriz e quando eu respeitava o personagem da Clara, sem que a atriz passasse à frente", disse.