O filósofo e professor titular do Departamento de Filosofia e do Instituto de Psicologia da USP, Vladimir Safatle, criticou a campanha de Guilherme Boulos (PSOL) à Prefeitura de São Paulo. O deputado federal teve 40,65% dos votos válidos no segundo turno, contra 59,35% de Ricardo Nunes (MDB).

Após o resultado nas urnas, o psolista reconheceu a derrota, mas afirmou que sua campanha foi responsável por “recuperar a dignidade da esquerda brasileira”. “Eu não vou fazer um discurso de perdedor, porque a gente perdeu a eleição, mas nessa campanha a gente recuperou a dignidade da esquerda brasileira”, declarou.

Em entrevista ao site IstoÉ, o filósofo e suplente de deputado estadual pelo PSOL rebateu o discurso de Boulos, questionou a estratégia eleitoral e avaliou que a chapa falhou em atrair eleitores ao perder sua essência de esquerda.

“Essa [campanha] não trouxe dignidade para a esquerda, muito pelo contrário. Nós vimos ela abrindo mão de várias pautas muito importantes e fazendo movimentos erráticos. É importante reavaliar isso de maneira correta. O PSOL perdeu as cinco prefeituras que comandava, de 92 vereadores eleitos no pleito passado foi para 80, não é possível que achem que está tudo certo”, declarou Safatle.

Leia a íntegra da entrevista

IstoÉ: A direita hoje está fortalecida e isso é a consequência de algo que vem acontecendo nos últimos anos. Desde o primeiro mandato de Dilma Rousseff (PT), em 2011, a esquerda segue perdendo espaço. Quais foram os maiores erros e o que ela precisa fazer para conquistar protagonismo?

Vladimir Safatle: Há uma série de coisas envolvidas. A primeira delas é que esse processo não é só brasileiro, mas sim mundial. No Brasil a gente vê isso de uma forma mais dramática, mais clara. De fato, desde o governo Dilma há uma retração da esquerda no seu horizonte de anunciação mesmo, de luta, porque ela tinha um modelo que era o lulismo, um modelo que funcionou e teve realizações; por exemplo, o aumento de 50% do valor real do salário mínimo, algo muito significativo para todas as pessoas da sociedade.

Só que a partir do governo Dilma ficou claro que aquele conjunto de políticas já tinha esgotado o que conseguia fazer. Então se tem o segundo conjunto de política, que é o combate real à desigualdade. Isso fez com que a esquerda ficasse refém da gestão da paralisia social.

Desde 2013, a direita se fortalece como uma opção de ruptura política, institucional e até mesmo com a radicalização dos institutos econômicos. E as crises e o capitalismo vão se aprofundando. Em seguida, tem uma sucessão de crises conexas como a ecológica, demográfica, política, econômica, social, entre outras coisas e as respostas da esquerda para essas críticas são muito ineficazes.

As respostas da direita não são melhores, mas elas têm uma coerência e fazem com que um setor da sociedade acredite. Por exemplo, na questão da crise econômica, a direita não propõe mudar o modo econômico de produção, mas afirma que essa é a realidade do capitalista e não tem como se mexer nisso. Portanto, a partir de agora, é cada um por si, não vai dar para oferecer proteção para todo mundo. Apenas uma parte da sociedade vai se salvar. Você quer estar nessa parte que vai te salvar ou não? Se quiser, vai ter de saber empreender, mas empreender tudo, a sua vida, sua família, todo o seu tempo, suas relações etc.

A esquerda diz que vai mudar a estrutura do capitalismo, mas isso não está acontecendo. Não dá pra mudar? Então o que se pode fazer? Reformar? Isso não tem como fazer, porque o capitalismo não se reforma em situações de crise, ele aprofunda elas.

O fato é que a extrema direita está dando respostas mais coerentes para as crises atuais, e isso faz com que a esquerda fique perdida. Nós conseguimos observar isso nas eleições municipais, a esquerda se tornou uma força política perdida que anda para um lado e para o outro.

Em São Paulo vimos o caso do Pablo Marçal (PRTB), que há duas semanas era ‘o diabo na terra’, a pior figura possível. Mas depois ele se tornou alguém conversável. Isso só passou para a população a impressão de desespero por parte da esquerda.

IstoÉ: Qual é a particularidade das eleições municipais e por qual razão o centro se sobressai nesse tipo de pleito?

VS: Essa não é a leitura que eu faço. Não tem centro. Se tem a direita tradicional e oligárquica, que pode muito bem se associar à extrema-direita em circunstâncias, como sempre se associaram. No caso do Bolsonaro, estavam todos agindo dentro das políticas dele.

O aliado orgânico e objetivo desse grupo é a extrema-direita. Não tem mais de centro.

IstoÉ: O senhor citou os players da direita e o Pablo Marçal. Na carta que Guilherme Boulos fez à população de São Paulo, ele chegou reconhecer que a esquerda perdeu o diálogo com a sua base, com os pequenos empreendedores, e até cita as as mulheres que vendem salgado na garagem de casa, os motoristas de aplicativo e ressalta que no seu possível governo teria propostas para eles. O senhor acha que essa colocação veio tardiamente?

VS: De tudo o que ele fez durante a campanha, isso foi o pior: acreditar que a população periférica precisa aceitar e naturalizar isso porque não tem nenhuma outra alternativa a não ser vender salgadinho na esquina, na porta da garagem, ou virar o motorista de aplicativo.

Isso é um erro brutal, acreditar que essas pessoas escolheram isso. Elas foram obrigadas a aceitar isso. Existe uma pesquisa mostrando que 60% das pessoas que trabalham na informalidade gostariam de ser CLT.

O empreendedorismo não é um modo de ação econômica, mas sim uma forma de violência social. É imaginar que todo mundo é concorrente uns dos outros, que tudo é uma competição e não existe solidariedade alguma, que é só você e mais ninguém.

Se esse é o jogo e vamos dar uma cara mais humana para esse tipo de violência social, não temos mais razão de existência.

Quando a esquerda trata da igualdade radical, as pessoas sabem que não vão ser exploradas. No outro tipo de situação existe exploração contínua, pois você é o seu próprio patrão. Isso é a pior das opressões, porque tudo que se faz é insuficiente, a maioria das pessoas não vai conseguir chegar ao ponto de ter uma estabilidade financeira. Só 5% da população vai conseguir isso. E os outros 95%? Vai falar que eles não tiveram iniciativa suficiente? Que foram incompetentes? Isso vai acabar destruindo o psicológico da sociedade.

Temos de fazer diferente e dizer que para essas pessoas que será criada uma macroestrutura de proteção social, que será desenvolvido um sistema no qual as pessoas não caiam a partir de um certo nível de pobreza, já que terão o mínimo de segurança. Mas isso não está acontecendo, nem a nível de governo federal.

IstoÉ: O senhor já afirmou que a direita aprendeu a jogar o jogo político perfeitamente. Algumas pessoas apontam que Kassab aprendeu isso e o apontam como o “grande vencedor” das eleições municipais, para outras o “grande ganhador” foi o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos). Na visão do senhor, quem foi o vencedor?

VS: Nenhum dos dois, quem ganhou foi o Pablo Marçal, pois ele surgiu do nada, ninguém conhecia, não tinha nenhuma estrutura política partidária e quase passou para o segundo turno.

Além disso, obrigou a esquerda a sentar e dialogar com ele como se fosse uma entrevista de emprego, normalizando ele e tirando qualquer possibilidade de fazer uma crítica mais radical de um personagem como ele. A esquerda não tem mais legitimidade.

Então ele se colocou com uma figura incontornável e saiu fortalecido.

Em relação ao Kassab, ele é só o gerente do balcão do Congresso Nacional e nada mais do que isso. Ele é a figura mais clássica da política brasileira, é o vazio, é o nada, é o ninguém. Há vários ninguém na política brasileira, pessoas que não representam absolutamente nada a não ser a continuação oligárquica da estrutura do Brasil.

Tarcísio de Freitas saiu um pouco melhor, porque conseguiu colocar um nada para administrar a cidade de São Paulo. Até pouco tempo atrás ninguém sabia o nome do sujeito.

IstoÉ: A esquerda colecionou alguns erros nas eleições municipais de 2024, tanto que garantiu no segundo turno apenas a Prefeitura de Fortaleza. Para o senhor, quais foram os grandes erros da esquerda e o que é preciso fazer para ela tentar chegar fortalecida no pleito de 2026?

VS: O maior erro dela foi não ter sido de esquerda, foi tentar ser outra coisa. E nessa situação em que há dois extremos há necessidade de ir para o outro extremo, se não fica sem lugar. A esquerda não tem só que saber defender, mas tem de agir a partir dos seus horizontes fundamentais, que é a igualdade racial por meio da soberania popular. Uma sociedade radicalmente igualitária, principalmente em um Brasil onde a diferença entre o maior e o menor salário é de 120 vezes. Quais são as políticas apresentadas para a gente combater isso? Houve tentativa de revogar a reforma trabalhista?

Então essa é a questão. Pode-se dizer que a esquerda não tem maioria no Congresso para fazer isso, mas isso não faz a menor diferença. É preciso sinalizar para a população que pelo menos está lutando. Olha o que a extrema-direita ensinou, o Bolsonaro também não tinha maioria, mas vivia falando que o Congresso, o Judiciário e a imprensa estavam contra ele. Mesmo assim, continuava tentando colocar as pautas dele.

Com isso, o Bolsonaro passava a sinalização para o eleitor dele de que não iria trair. A esquerda nem tenta. O país, por exemplo, tem 44 horas semanais de trabalho. A esquerda nunca tentou colocar um projeto para reduzir para 40 ou 35.

Dizem que isso não vai passar, mas isso não faz diferença, pois houve uma sinalização para a população de que está tentando. Não deu certo, daqui dois ou três anos tenta de novo. Isso faz com que as pessoas acreditem na esquerda.

IstoÉ: Na visão do Senhor, se a esquerda continuar desse jeito, ela não consegue chegar fortalecida para a próxima eleição, mesmo tendo uma figura como presidente Lula?

VS: O Lula ganhou e ganhou com uma diferença de dois milhões de votos. Vínhamos de um governo em que teve 700 mil mortos na pandemia de Covid-19, que era o exemplo mais catastrófico de gestão da pandemia no mundo inteiro. O preço das coisas aumentou a ponto de as pessoas comprarem osso no mercado. Foi contra isso que a esquerda ganhou e fazendo uma aliança com todo mundo.

Ou seja, houve uma vitória no limite, mostrando que a esquerda ainda enfrenta problemas se não conseguir apresentar respostas claras para a população em um curto espaço de tempo. Agora está se vendo esses problemas e não há preparação para nada disso.

IstoÉ: O senhor então não concorda com a afirmação do Guilherme Boulos, em discurso após o resultado do pleito, de que a campanha dele recuperou a dignidade da esquerda brasileira?

VS: Eu participei da elaboração de campanha dele em 2018 e novamente em 2020. Neste ano não participei. Mas houve o envolvimento de grandes lideranças deste país. Porém, para mim, essa campanha foi completamente equivocada. O Guilherme Boulos é uma pessoa muito inteligente e ele vai entender isso.

Mas (essa campanha) não trouxe dignidade para a esquerda, muito pelo contrário. Nós vimos ela abrindo mão de várias pautas muito importantes e fazendo movimentos erráticos. É importante reavaliar isso de maneira correta. O PSOL perdeu as cinco prefeituras que comandava, de 92 vereadores eleitos no pleito passado foi para 80, não é possível que achem que está tudo certo.