[posts-relacionados]Em 1976, o professor e historiador da fotografia Boris Kossoy publicou “Hércules Florence, 1833: A Descoberta Isolada da Fotografia no Brasil”. Era o resultado de sua tese de Doutorado. Apesar do caráter acadêmico, a obra teve repercussão mundial porque demonstrou que os trabalhos coletivos de desenvolvimento da fotografia tinha um representante genial no Brasil: o tipógrafo e inventor franco-monegasco Antoine Hercule Romuald Florence (1804-1879).

Distante dos centros de pesquisa mundiais, ele descobriu em 1833 o processo de reprodução e fixação de imagens, a que denominou “photographie”, ou fotografia, quase que simultaneamente a outros cientistas da Europa. Sem ter conhecimento de outras realizações, conseguiu fixar as imagens geradas pela luz solar em um suporte de papel recoberto por negro de fumo e goma arábica. É certo que, em 1826, o francês Nicéphore-Niépce (1765-1833) divulgara a heliografia, uma imagem fixada em uma placa de estanho com betume que ele obteve por da janela de sua casa em Chalon-sur-Saône, na Borgonha. Seu colaborador Louis Daguerre (1787-1851) patenteou em 1835 o primeiro processo fotográfico, o daguerreótipo, e, em seguida, a chapa coberta de nitrato de prata que permitia a aderência de imagens.

O livro de Kossoy, de 71 anos, está em terceira edição e continua a surpreender os historiógrafos eurocêntricos. Nesta entrevista à ISTOÉ, Kossoy analisa o legado de um inventor cuja obra ainda precisa ser analisada em outras áreas que não a fotográfica, conforme mostra a recente publicação fac-similar de suas memórias, L’Ami des arts livré à lui-même. Recherches et découvertes sur différent sujets nouveaux”  (“O amigo das artes entregue a si mesmo. Pesquisas e descobertas sobre assuntos novos”), escrita em um caderno grande de capa dura entre 1837 e 1859.

Qual a importância do lançamento da edição fac-similar das memórias “L’Ami des arts livré à lui-même”, de Hercule Florence?

O fac-símile do manuscrito  L’Ami des arts livré à lui-même conjuga o tesouro de informações que traz em seu conteúdo com a excelência da qualidade gráfica e editorial. É um livro-objeto que deverá encantar aos bibliófilos, em qualquer parte do mundo. De outra parte, pelo que fui informado pelo IHF, o projeto do L’ami des arts não tem por destino final apenas a edição do fac-símile, vai além disso na medida em que seu conteúdo se encontrará disponível on line no site do Instituto; isto tornará o manuscrito finalmente acessível à comunidade dos pesquisadores de diferentes áreas, tanto no Brasil como internacionalmente. Esta forma de difusão é de definitiva importância para a cultura brasileira, para que se conheça, enfim, o pensamento e as realizações de Hercule Florence no Brasil do século XIX, que permanecem ainda sob uma espessa névoa.

Seu trabalho pioneiro sobre Hercule inventor do processo fotográfico se baseou em grande parte no manuscrito. Conte um pouco dessa experiência.

Minhas pesquisas se apoiam basicamente em fontes primárias. O L’ami des arts (iniciado em 1837) foi um dos manuscritos básicos para a investigação. O corpo dos temas tratados  tem uma forma cuidada, não são anotações do dia-a-dia de trabalho como são os tradicionais diários, e sim, textos editados; tudo indica que Florence teria em mente uma eventual publicação do conjunto em forma de capítulos de um livro. Já os outros manuscritos também foram igualmente importantes para minhas pesquisas, como o Livre d’annotations et de premiers matériaux  (iniciado em 1829), o 2ème livre de premiers matériaux (iniciado em 1836), o 3ème livre de premiers matériaux (iniciado em 1836) e o L’inventeur au Brésil. Correspondance et Pièces Scientifiques (não datado), além de desenhos de seu equipamento, as provas fotográficas, cartas, além de exemplares impressos pela poligrafia e, naturalmente, a consulta à sua farta iconografia produzida durante a expedição Langsdorff.

Fontes de outra natureza também poderiam ser mencionadas como anúncios comerciais, divulgação técnica de processos de impressão entre outros materiais veiculados por Florence em jornais e folhetos. Uma extensa pesquisa paralela nos acervos de instituições públicas além da bibliográfica histórica e técnica foi levantada. Os três livros de anotações mencionados acima são, de fato, anotações do andamento de suas investigações que se entremeiam constantemente. São relatos datados cronologicamente de suas investigações e comentários de ordem moral, social e comercial, que fazia para si mesmo. Sem embargo, o L’ami des arts contém um texto épico sobre suas frustrações que intitulou: “L’inventeur en exil”. Aprendi muito sobre as realizações da Florence e também sobre sua personalidade e suas decepções confiadas em seus diários. Li inúmeras vezes seus manuscritos nas últimas quatro décadas, tal era necessário para poder, vez ou outra, “descobrir” alguma palavra  que pudesse ser útil para compreender o alcance de sua descoberta da fotografia.

Hercule Florence (Crédito:Reprodução)

Você pesquisou também no acervo de Leila Florence. O que você encontrou lá que é interessante para a sua pesquisa e para outros tipos de investigação acadêmica e quais foram os desafios ao examinar esse acervo que está fechado à consulta?
Sim. pesquisei muito no acervo do Dr. Cyrillo H.Florence, isto ainda nos anos de 1970. Com o falecimento de Cyrillo segui em contato com Leila e Silvia Florence. Foi neste acervo que segui descobrindo importantes materiais manuscritos e, principalmente, uma preciosa iconografia produzida por Florence ao longo de sua vida.

Que outras frentes de pesquisa esse imenso manuscrito abre para a Academia e para a divulgação da imagem de Florence como antropologia, estudos brasileiros, invenções e literatura?

Hercule Florence é, sem dúvida, um dos grandes inventores da fotografia, arte, técnica e meio de informação que tem múltiplas paternidades. Nas primeiras três décadas do século XIX, pesquisadores estabelecidos em  lugares diferentes, sem se conhecerem uns aos outros, buscavam um meio de tornar permanentes as imagens do mundo que se formavam na camera obscura. A fotografia surgiu em função de descobertas da química e da física que foram se acumulando ao longo de muito tempo. Foram, entretanto apenas alguns pesquisadores determinados que buscaram meios de capturar a imagem dos objetos no interior da camera obscura, ou métodos de reproduzirem originais, sempre através da ação da luz sobre superfícies fotossensíveis. Entre eles se destacam Nièpce, Daguerre, Fox Talbot, Bayard e Florence, apesar de que vários outros em diferentes países realizavam experiências no mesmo sentido.

Como inventor, Florence foi realmente um dos grandes inventores da fotografia? Por que ele ficou isolado e não voltou à Europa, nem patenteou suas invenções?

Esses precursores se apoiaram basicamente sobre conhecimentos preexistentes como o princípio óptico da camera obscura e a ação de escurecimento dos sais de prata quando atingidos pela luz. O processo do pintor francês Louis Jacques Mandé Daguerre (1787-1851)– o daguerreótipo —  tornado público em 19 de agosto de 1839, prevaleceria ao longo da década de 1840 e parte da de 1850, quando então o sistema negativo-positivo  desenvolvido por William Henry Fox Talbot (1800-1877) se afirmaria definitivamente.

Por razões de ordem política Hippolyte Bayard (1801-1887) , um funcionário público e pesquisador nas horas vagas, foi removido de uma posição de maior destaque que poderia ter alcançado dentre os demais inventores, em função das gestões políticas que François Arago, cientista e deputado pelos Alpes Pirineus, e protetor de Daguerre, promovia junto ao governo da França. Joseph Nicéphore Nièpce (1865-1833) foi o primeiro a obter uma imagem e a torná-la permanente, dando ao seu processo o nome de Heliografia, isto no princípio da década de 1820; em 1829 formou sociedade com Daguerre, continuando ambos a desenvolverem suas investigações e manterem-se em contato por correspondência. Nièpce veio a falecer em 1833 e Daguerre prosseguiu com as pesquisas. No celebrado dia 19 de agosto de 1839, o governo da França anuncia a invenção de Daguerre.

Hercule Florence (1804-1879) desenvolveu, a partir de 1833 na Vila de São Carlos (Campinas) seu processo de “impressão” sobre papeis fotossensíveis (cloreto de prata e cloreto de ouro), pela ação da luz; a seguir descobriu um meio de fixar essas imagens com amônia.  Do ponto de vista técnico e científico foi o primeiro, dentre os demais inventores, a tornar permanente uma imagem fotográfica. Além disso, deve-se a ele o emprego, pela primeira vez na história, do termo photographie. O vocábulo photography só seria usado pela primeira vez na Europa em 1839, introduzido pelo cientista inglês John Herschel.

A ausência de meios de impressão que pudessem transmitir o conhecimento é a principal razão que o levou à descoberta de um processo fotográfico. Suas r aqui. O fato é que a descoberta de Florence passou despercebida no meio escravista em que viveu, num ambiente inculto, desprovido de academias científicas, acompanhado apenas dos volumes de química que mandava vir da Europa e que tanto lhe serviram. Quando tomou conhecimento da invenção de Daguerre, publicou um comunicado no jornal paulista A Phenix (26.10.1839) depois reproduzido no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro (29.12.1839), no qual afirma:

“Um dezenho photographiado por mim, foi apresentado ao Príncipe de Joinville e posto no seu álbum por uma pessoa a quem devo este favor. Acabo de ser informado que na Alemanha se te imprimido pela luz, e que em Paris, está se levando a fixação das imagens a muita perfeição. Como tratei pouco da photographia por precisar de meios mais complicados, e de suficientes conhecimentos químicos, não disputarei descobertas a ninguém…porque uma mesma ideia pode vir a duas pessoas…porque sempre achei precariedade nos fatos que alcançava, e a cada um o que lhe é devido…”

Naquela altura, o próprio Florence não realizava o alcance de sua descoberta. No texto antes citado “L inventeur en exil”  ele deixa bem claro seus sentimentos em relação ao Brasil, numa frase marcante que nunca perdeu sua atualidade.

“Em um século em que se recompensa o talento, a Providência me trouxe a um país onde isso não importa. Sofro os horrores da miséria, e minha imaginação está plena de descobertas. Nenhuma alma me escuta, nem me compreenderia. Aqui só se dá valor ao ouro, só se ocupam de política, comércio, açúcar, café e carne humana. Sem dúvida conheço algumas almas grandes e belas, mas essas, em número muito reduzido, não são formadas na minha linguagem e eu respeito sua ignorância.

Alguém poderia dizer que Florence estava no lugar errado, na hora errada. No entanto, não se pode imaginar um suposto cenário no qual Florence nunca tivesse deixado a França, seu país natal. Teria ele se motivado em desenvolver suas experiências com a camera obscura ou se interessado em saber qual era a ação da luz sobre os sais de prata? E, no caso de ter ele se interessado por tais temas, teria merecido o reconhecimento que foi devido a Daguerre? Vimos qual foi o destino que teve Bayard em Paris, em plena “civilização” europeia.

A invenção de Florence permaneceu encoberta, sem comprovação científica, por cerca de 140 anos até 1976, quando começou a obter algum reconhecimento da comunidade acadêmica internacional. Este processo de reconhecimento científico foi extremamente lento e gradual, situação que agora é completamente distinta. As prioridades alcançadas por Florence  são hoje plenamente reconhecidas nos meios acadêmicos internacionais. As obras de referência sobre a história da fotografia publicadas na Europa, Estados Unidos e América Latina, bem que comprovam isso.

Você acha que é necessário traduzir os textos de Florence para o português? Por quê?

É definitivamente necessário. O alcance da obra de Florence sempre foi muito limitado. O conteúdo do manuscrito L’ami des arts era, até o momento, desconhecido, não somente no Brasil como em todas as partes. Não tenho dúvidas que, uma acessível pela rede, seja no original francês, seja na tradução para o português será objeto de grande interesse e veículo para a produção do conhecimento.