Numa entrevista por e-mail, Bong Joon-ho, diretor de Parasita, que estreia nesta quinta, 7 – e terá debate do Estado na quarta, 6, no Petra Belas Artes -, destaca que a Palma de Ouro para o filme, em Cannes, em maio, veio num momento especial, quando se comemora o centenário do cinema coreano. Ele assume o caráter social da obra com a discussão sobre a luta de classes na Coreia e no mundo, ainda marcado por desigualdades profundas.
Seu filme é uma mistura de O Hospedeiro com Okja e também marca seu retorno à Coreia, após experiências no cinema internacional. Nasceu do seu desejo de comentar a situação no país?
Nunca foi minha intenção criar uma trilogia de classes. Não tenho um projeto de carreira, conto as histórias dos personagens que me fascinam no momento. A ideia surgiu em 2013, portanto, é anterior a Expresso do Amanhã e Okja, que foram produções internacionais porque as histórias exigiam. Os últimos sobreviventes da humanidade num trem e a busca que leva uma garota das montanhas da Coreia a Manhattan, para salvar seu animal de estimação. Gostei, claro, de trabalhar com uma equipe toda coreana, em outra história que se passa na Coreia, mas não creio que seja um retorno, não nesse sentido. O retorno é a outra escala de produção, mais próxima de filmes anteriores. Gostei de trabalhar com uma produção menor, mais focado nos problemas da narrativa e dos personagens.
No começo, a gente pensa que os pobres são os parasitas da história, mas, na verdade, os ricos precisam deles e talvez sejam parasitas também (ou mais ainda). Faz sentido para você?
Sem dúvida. Como a história segue o processo como a família pobre se infiltra na casa dos ricos, parece óbvio que sejam os parasitas. Mas a família rica vive numa situação de dependência para sobreviver. Precisa de quem dirija, cozinhe e, do ponto de vista do trabalho, também é constituída por parasitas.
A ideia surgiu de alguma observação sua ou foi baseada em informações – alguma coisa que você tenha visto na TV, na internet ou lido nos jornais?
O argumento e o roteiro são originais, mas, quando jovem, e ainda estava na faculdade, trabalhei como tutor na casa de uma família rica. Dava aulas particulares e, quando os pais não estavam, meu estudante me levava para conhecer os ambientes. Mostrou-me a sauna privativa, e aquilo me passou uma ideia de invasão de privacidade, como se eu fosse um voyeur, fantasiando sobre a vida daqueles estranhos. A ideia ficou comigo e, de alguma forma, germinou no que virou Parasita.
Você tem um set muito rico e complexo. A casa dos ricos, a par de ser opulenta, tem vários níveis, enquanto os pobres, no geral, habitam em porões. O set foi construído dessa maneira para expressar sua visão social?
O alinhamento vertical dos espaços era a temática e também visualmente importante para a história e, desde o princípio, nos referíamos, internamente, a Parasita como um ‘filme-escada’. Existem diversos tipos de escadas que refletem a estrutura vertical de classes. É similar ao modo como a água é usada no filme – ela flui do alto e, no caso da família Kim, a dos pobres, termina por inundar a casa. A casa dos ricos foi realmente modelada por um arquiteto de sucesso e, embora nem todos os trabalhadores vivam como os Kim, esse tipo de alojamento no subsolo é muito comum, e mais barato, nas áreas urbanas da Coreia.
Em Mother – A Busca pela Verdade, havia partes que faltavam, mas dessa vez as duas famílias têm a mesma composição e número de integrantes. Por quê?
Nos primeiros estágios de desenvolvimento do roteiro, o título ainda não era Parasita, mas Decalcomania. Dividíamos o papel, criávamos alguma coisa de um lado e tentávamos algo similar do outro, mas diferente. Originalmente, a ênfase estava na simetria, mas eu terminei por mudar a estrutura para que o público pudesse entender melhor a forma como a família pobre se infiltra na casa dos ricos.
Diferenças sociais são um tema importante no cinema coreano. Estou pensando em A Empregada, de Kim Ki-young e Em Chamas, de Lee Chang-dong. Foram referências? E O Criado, o clássico de Joseph Losey com roteiro de Harold Pinter?
A Empregada foi muito importante, até porque sequências essenciais do filme de Kim Ki-young também se passam em escadas. É um dos meus filmes favoritos. Kim é meu mentor. O Criado foi outra referência e eu revi o filme de Losey enquanto preparava o meu. Mas a verdade é que, nos últimos tempos, têm havido um número significativo de filmes que também abordam problemas de classes – Em Chamas, Assunto de Família, de Hirokazu Kore-eda, Nós, de Jordan Peele. Em nenhum momento houve a preocupação de transformar Parasita num compêndio de outros filmes, mas era claro o entendimento de que o tema é relevante no cinema mundial, face a tanta desigualdade no mundo.
O marido rico, Mr. Park, tem tudo, mas precisa de estímulo para sua relação íntima com a mulher. Daí a questão do cheiro, por exemplo. Como você explica?
É o tipo de pessoa que ele é. Socialmente, detesta que alguém tente cruzar a linha que delimita seu mundo. Mas pessoalmente, e sexualmente, ele cruza a linha, porque precisa desse estímulo. Mr. Park carrega esse sentimento contraditório e vira um homem fragilizado, dividido, a despeito de sua força social. E isso acelera o desenlace.
O que representa a Palma de Ouro para você? Tem chances no Oscar?
A coincidência é que se comemora neste ano o centenário do cinema coreano. A Palma veio num momento especial, todo mundo ficou feliz, mas nada mudou só porque ganhei o prêmio. Já estava escrevendo meu próximo filme no voo de volta, com a Palma na bagagem. O importante é continuar o trabalho que sempre fiz. Quanto ao Oscar, é a primeira vez que participo de uma campanha tão extensa e complicada, com tantos votantes. É impossível fazer previsões, mas estou adorando conhecer tantos artistas importantes de Hollywood.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.