O bom senso ensina que se deve ir devagar com o andor quando o santo é de barro. E se ele, o andor, estiver podre? E se na madeira os cupins já começam a fazer os seus tortuosos, infinitos e sombrios túneis? Aí, se esse é o estado da charola, o melhor é que o santo nem saia da paróquia. O andor imprestável, em questão, é o governo antidemocrático de Jair Bolsonaro. Tão antidemocrático e tão ávido de esfacelar o Estado de Direito e enveredar pelo funesto cortejo do acirramento de uma crise institucional, insurgindo-se em relação aos demais poderes republicanos, que até associações, movimentos e grupos autodeclarados de direita e extrema-direita perceberam a gravidade da manifestação conclamada pelo mandatário para o próximo dia 15.

Empresários recuam, como, por exemplo, os que integram a entidade Brasil 200, fundada por Flávio Rocha e presidida por Gabriel Kanner – que já anunciou que não fará convocação para os prostestos. Ao contrário: após uma série de desentendimentos entre o Brasil 200 e o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, sobretudo devido à proposta de reforma tributária (PEC 45), a costura de uma reconciliação já está em andamento — e será agendado um jantar. Movimentos sociais e políticos, a exemplo do Brasil Livre e do Vem Pra Rua, também não estão empenhados em engrossar os protestos. Capitão Bolsonaro, o senhor perdeu! O estilo de seu governo é sobejamente conhecido, trata-se de difamar e afastar da gestão os seus opositores, confrontar sempre e dialogar nunca, transformando a República no quintal de seu clã. Muitos daqueles que em um primeiro instante sentiram o ímpeto de ir à manifestação, logo perceberam que, no momento, o senhor elegeu a própria instituição democrática, nos recortes do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, como obstáculo a seus caprichos. Ou seja: o desejo, de agora, mais do que nunca se mostrou autocrata, pois parte da presunção de que o Poder Executivo é superior aos Poderes Legislativo e Judiciário.

Devido ao coronavírus, em todo o mundo pede-se que se evitem aglomerações. O problema é que os bolsonaristas vivem fora do planeta

Temor da milicialização

Junte-se a isso a dubiedade com que Bolsonaro se manifestou em relação à ilegal e inconstitucional greve dos policais no Ceará, ao apoiá-los na absurda reivindicação de não punibilidade e anistia – acertadamente não concedida pelo governador Camilo Santana. Foram treze dias de motim, deixando que bandidos e milicianos assassinassem cerca de duzentas e cinquenta pessoas. Grupos empresariais condenaram a tibieza do governo federal e o risco de que cresça a milicialização da Polícia Militar nos estados. Ser de extrema-direita, direita, democrata, esquerda ou extrema esquerda é um direito constitucional de todo e qualquer cidadão – bem diferente é tentar golpear as instituições como podem ser traduzidas as convocatórias que se espalham para o dia 15. Quem parou e pensou descobriu que, de fato, o andor apodrecera.

PAZ Maia e a classe empresarial já se reconciliam após as divergência em torno da PEC 45: a Câmara dos Deputados segue prestigiada (Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Há, no entanto, outro contrassenso igualmente grave porque envolve questão de saúde pública. Existe quem não tenha a menor noção do que acontece a um palmo de distância de si, tamanha é a compulsão por ficar fechado em seu mundinho – de celular nas mãos e provocando gente e instituições pelas redes sociais. Como convocar dezenas de milhares de pessoas para uma concentração, no momento em que as mais categorizadas autoridades do mundo, na área da infectologia, estão pedindo para que não ocorram eventos desse tipo devido à pandemia do novo coronavírus? Museus estão sendo fechados em praticamente toda a Unidade Europeia, escolas tiveram aulas suspensas também na Europa e em países asiáticos, missas e cultos sofreram alterações em suas rotinas, campeonatos de futebol viram-se interrompidos e, quase certo, não teremos Jogos Olímpicos, marcados para o segundo semestre no Japão. No Brasil, sobe o número de infectados, o que faz parte, infelizmente, da propagação natural de enfermidades virais.

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Não há razão para alarmismo, mas é dever de todos, sobretudo de quem preside uma nação, praticar e incentivar as medidas de profilaxia. Isso também faz parte do ato de governar, também para isso alguém confia dar mandato a alguém, também isso está previsto e determinado na Constituição. Com razão, por todos os motivos expostos, empresários já recuam de apoiar o ato antidemocrático. Quando um governante transforma a própria democracia e o próprio Estado de Direito como adversários, a situação é gravíssima. Com clareza, o governador de São Paulo, João Doria, foi cirurgicamnte preciso: “Nós (governadores) representamos o Poder Executivo. Ele (Bolsonaro) tem de representar o que uma democracia espera de um presidente da República”. Mais esclarecedor, impossível. Mas, creiam, bolsonaristas não entenderam nem entenderão o que foi dito.


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