Em apuros na área econômica, Jair Bolsonaro tenta realocar os holofotes sob a agenda de costumes, que teve papel preponderante na campanha de 2018. Na tentativa de municiar a base ideológica no Congresso, reanimar a militância e inflamar as redes sociais, o presidente elegeu a pauta antiaborto para avocar a si o papel de herói no que chama de uma “luta do bem contra o mal”.

A investida guarda relação com os números de pesquisas que o Palácio do Planalto desmerece em público — sondagem do Datafolha mostra que Bolsonaro está na dianteira entre evangélicos, com 36% das intenções de voto, mas precisa crescer ainda mais no segmento para reduzir a vantagem de Lula no cenário geral. Além disso, o presidente busca avançar entre os católicos, grupo no qual o petista acumula 22 pontos percentuais de vantagem.

A estratégia de retomada da ideologização começou a ser implementada no início do mês, quando o Ministério da Saúde ressuscitou a discussão sobre a interrupção da gravidez, com a publicação de uma cartilha em que afirma que “todo aborto é crime”, embora o procedimento seja permitido no país em caso de risco à vida da mulher, de diagnóstico do bebê com anencefalia ou de gestão decorrente de estupro. A tese, além de mentirosa, reforça a estigmatização da prática. O documento fala, ainda, na necessidade de investigação dos casos de aborto amparados pela lei, o que tem potencial para acuar as mulheres, empurrando-as para a clandestinidade.

O que era um show de horrores piorou na terça-feira, 28, em uma audiência pública, com maioria maçante bolsonarista e sem representantes de ONG’s que defendem os direitos das mulheres, na qual houve a discussão das diretrizes propostas. A partir das vozes de estridentes aliadas de Bolsonaro no Congresso e até mesmo da conselheira do ex-presidente americano Donald Trump, Valerie Huber, o tema, mais uma vez, foi discutido sob a ótica do conservadorismo e, não, como uma questão de saúde pública, apesar de o Ministério da Saúde reconhecer que o aborto clandestino é a quinta maior causa de mortes maternas no Brasil.

Integrantes da pasta nem sequer tentaram camuflar os ares de comício da audiência e listaram críticas nominais a Lula, que, segundo eles, inflou números para tentar avançar na descriminalização do aborto. “Lamentavelmente no Brasil nos últimos tempos os números eram jogados para hiperbolizar e com isso conseguia aderir pessoas à causa.”, disparou o secretário de Atenção Primária à Saúde, Raphael Câmara, responsável pela cartilha.

A discussão sobre o aborto não se restringiu ao ministério. Na última quinta-feira, 23, Bolsonaro reativou o discurso extremista e valeu-se do caso de uma menina de 11 anos, vítima de estupro, que buscou o Estado para interromper a gravidez, para criticar a lei em vigência no país. A criança chegou a ser induzida pela juíza catarinense Joana Ribeiro a manter a gestação, mas conseguiu realizar o procedimento após a repercussão do caso, sob a sombra da legislação.

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Nas redes sociais, Bolsonaro afirmou que “a forma” por meio da qual o bebê foi gerado não deveria ser discutida e classificou o aborto como “inadmissível”. O presidente ainda informou ter pedido aos ministérios da Justiça e Segurança Pública e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos uma investigação sobre o que chamou de “abusos” no procedimento. Ele reavivou o tema no domingo (26), chegando ao ápice da barbárie ao dizer que iria querer o feto vivo, caso a filha dele, Laura, de 11 anos, fosse estuprada.

Em 2020, diante de um caso similar, Bolsonaro optou pelo silêncio. O presidente não se pronunciou sobre o caso de uma menina de dez anos, vítima de estupro, que recorreu ao aborto sob protestos de evangélicos após ter os dados revelados pela ativista Sara Girominni, conhecida como Sara Winter, que, à época, era uma das mais aguerridas defensoras do Planalto. A menina teve de ingressar no Programa de Apoio e Proteção às Testemunhas, Vítimas e Familiares de Vítimas da Violência (Provita), oferecido pelo governo do Espírito Santo, que prevê apoio como mudança de identidade e de endereço.

A postura de Bolsonaro reflete um caminho inverso ao que o país deveria adotar. A criminalização da interrupção da gravidez não é a chave para reduzir o número de casos — na realidade, apenas deixa as mulheres pobres à própria sorte, nas mãos de médicos carniceiros de clínicas clandestinas, enquanto as abastadas recorrem a polpudas contas para realizar o procedimento no exterior, em unidades de saúde especializadas.

Até a última semana, quando a Suprema Corte dos EUA derrubou o direito constitucional ao aborto, o país demonstrava em números o sucesso da gestão baseada na soma do suporte do Estado à interrupção da gravidez e da valorização dos métodos anticoncepcionais e do planejamento familiar. No país norte-americano, a taxa de aborto seguiu uma tendência de queda por 30 anos. Os índices de morte em decorrência do procedimento ficaram sempre próximos a zero. A participação das mulheres no mercado de trabalho passou de 43% em 1970 para 57,4% em 2019. O público feminino tornou-se mais independente financeiramente.

Está mais do que justificada, portanto, a onda de protestos que tomou dezenas de estados dos EUA após a decisão judicial que representa um prelúdio do retrocesso mundial. Reforço o coro para que os governantes recorram às estatísticas e, não, à ideologia ou à religião para definir políticas públicas.


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