A poucos meses do fim de seu mandato à frente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz tem uma coleção de embates com o presidente Jair Bolsonaro. A cruzada começou oito anos antes de ele assumir o comando da instituição, em janeiro de 2019. Ainda em 2011, durante palestra em uma universidade do Rio de Janeiro, o então deputado Jair Bolsonaro disse que o pai de Santa Cruz teria morrido “bêbado” após pular o carnaval. Na verdade, Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira desapareceu em 1974, depois de ter sido preso por agentes do DOI-Codi, órgão de repressão da ditadura militar. Ele era estudante de Direito e militante do grupo de esquerda Ação Popular Marxista-Leninista (APML). Ao chegar à presidência da OAB-RJ, em 2016, Felipe Santa Cruz pediu a cassação do então parlamentar. Sob sua gestão, a OAB nacional ganhou um perfil bastante politizado, defendendo pautas consideradas de esquerda pelo capitão. Em entrevista à ISTOÉ, Santa Cruz afirmou que a OAB pode apresentar um novo pedido de impeachment contra Bolsonaro à Câmara dos Deputados e acusa o mandatário de tentar desestabilizar a democracia. “O que foi acrescentado ao seu perfil autoritário foi sua completa incompetência, ineficiência e desrespeito à vida”, afirmou.

A OAB fará uma reunião nesta semana para discutir o impeachment de Bolsonaro. A entidade pode formular novo pedido?
Temos uma reunião do Conselho Federal marcada para a próxima terça-feira, 20, para fazer essa discussão. A OAB sempre acompanhou de perto tudo o que diz respeito à pandemia e aos ataques que o presidente faz à Constituição e ao Estado Democrático de Direito. No início deste ano, o conselho denunciou o governo Bolsonaro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) pela condução criminosa da pandemia. O conselho também pediu à Procuradoria-Geral da República que denunciasse o presidente Bolsonaro ao Supremo Tribunal Federal por ter cometido quatro crimes previstos no Código Penal durante a pandemia: expor a perigo a vida ou saúde de outras pessoas; infração de medida sanitária preventiva; emprego irregular de verbas ou rendas públicas; e prevaricação. Infelizmente, até hoje, a PGR ainda não se manifestou sobre esse pedido. Em outra iniciativa, a pedido do próprio Conselho Federal, um grupo de juristas altamente renomado elaborou um parecer muito bem fundamentado sobre os possíveis crimes praticados pelo presidente durante a crise sanitária. Agora, chegou a hora de discutir o impeachment no âmbito da OAB. O debate sempre irá girar em torno da questão jurídica. Os 81 conselheiros que compõem o colegiado é que vão tomar a decisão.

Há mais de 120 pedidos de impeachment na Câmara. Por que Arthur Lira, presidente da Casa, não analisou nenhum deles até agora?
O impeachment é um processo jurídico e fundamentalmente político. Nos últimos meses, o crescimento das mobilizações populares e o avanço das investigações sobre as omissões na condução dessa terrível pandemia, têm aumentado a pressão para que Lira examine os pedidos. Sempre houve, de minha parte, e de grande parte do Conselho Federal da OAB, uma dúvida sobre como levar adiante um debate desses com o Congresso. Afinal, em meio à pandemia, o distanciamento social vem impedindo boa parte dos brasileiros de se manifestarem. É uma questão complexa. Mas não pode deixar de ser debatida. Por isso, o conselho foi convocado a tomar uma decisão. Espero que o presidente da Câmara também o faça.

Qual o grau de envolvimento de Bolsonaro nas denúncias de corrupção investigadas pela CPI?
Por enquanto, o que temos são depoimentos, indícios, apurações e denúncias muito graves, que mostram que há fatos importantes a serem esclarecidos.

O que o senhor considera mais grave até aqui?
Como eu disse, ainda precisamos esperar o final dos trabalhos da CPI para ter uma ideia mais clara do envolvimento do presidente. No entanto, considero gravíssimas as suspeitas de superfaturamento de vacinas e do possível pedido de vantagens indevidas, no meio de uma pandemia que já levou a vida de mais de 530 mil brasileiros. É também muito séria a acusação, e deve ser apurada com rigor e com amplo direito de defesa, de que o presidente foi informado sobre os desvios e não tomou providências para cessar os malfeitos.

Por que chegamos ao caos na pandemia?
É inegável que a gestão da pandemia foi um desastre. Isso não sou eu que digo, são praticamente todos os infectologistas e cientistas, que apontam erros e omissões. Entre esses equívocos mais graves, estão o negacionismo, a completa falta de coordenação das ações em nível federal, o boicote a medidas sanitárias consagradas pela Organização Mundial de Saúde por parte do governo federal, a defesa de medicamentos comprovadamente ineficazes, o atraso na compra de vacinas, etc. Os fatos estão aí, fartamente documentados. E, agora, com a CPI, foram acrescidas denúncias ainda mais sérias de corrupção e prevaricação. As responsabilidades devem ser necessariamente apuradas e os responsáveis, punidos. Confio que tanto o Congresso, por meio da CPI, quanto o Ministério Público, não se furtarão a cumprir seu papel constitucional em um tema tão sério, que custou as vidas de mais de meio milhão de brasileiros.

Na semana passada, a CPI mandou prender o ex-diretor de logística do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias. Achou exagerada a decisão?
Houve muita polêmica nos meios jurídicos, muitos advogados penalistas questionaram a prisão. Nos últimos anos, assistimos graves violações do processo legal, que foram inclusive denunciadas e criticadas pela Ordem. Temos que ter o máximo cuidado para não reproduzir práticas autoritárias, para que os abusos não se repitam contra ninguém, e prezar sempre pela legalidade, a ampla defesa e o contraditório.

O que o senhor achou da nota divulgada pelas Forças Armadas criticando o presidente da CPI?
A CPI é um instrumento para que o Poder Legislativo exerça sua função de fiscalizar a administração pública. Portanto, se há uma minoria de militares que participam do governo e tem agido incorretamente, eles devem ser investigados e punidos. Até porque, ao se agir dessa forma, estaremos preservando as Forças Armadas, que, certamente, não podem responder por medidas tomadas por uma minoria de seus integrantes. Assim, é descabida qualquer tentativa de intimidar o Senado Federal, que apenas está cumprindo seu papel constitucional de fiscalizar. É o respeito à Constituição que garante a estabilidade, a democracia e as liberdades.

Bolsonaro voltou a ameaçar a realização das eleições no ano que vem, dizendo que “ou fazemos eleições limpas, ou não teremos eleições”. O que achou disso?
As eleições são determinação constitucional. Não cabe ao presidente da República colocá-las em questionamento. Foi esse sistema que o elegeu para vários mandatos de deputado e para a presidência, e que também elegeu seus filhos para os mandatos que hoje ocupam. E esse mesmo sistema democrático irá eleger o próximo presidente, independentemente de suas bravatas.

Mas a democracia está segura?
O presidente tenta, sim, desestabilizar a democracia, desafiar as instituições. Seus ataques ao Supremo Tribunal Federal, suas tentativas de envolver as Forças Armadas e as corporações policiais em ameaças golpistas, seu desrespeito à liberdade de imprensa, o uso do aparelho do Estado para perseguir opositores — todo dia há um sinal de ataque aos pilares da nossa democracia. Até hoje, mesmo com todo o estresse, as instituições têm sido resilientes. Mas se há algo que ninguém pode acusar o presidente Bolsonaro é de ele ter enganado quem quer que seja. Ele sempre defendeu a ditadura, sempre louvou torturadores, chegou a defender uma guerra civil. Está sendo coerente com esse histórico. O que foi acrescentado ao seu conhecido perfil autoritário foi sua completa incompetência, ineficiência e desrespeito à vida dos brasileiros.

Qual a sua avaliação sobre os áudios que envolveram o presidente num suposto esquema de rachadinhas no Rio de Janeiro?
É muito grave. Já existem investigações avançadas sobre essa história. O aparecimento dessas novas gravações certamente traz novos elementos aos processos que já estão em andamento no Rio de Janeiro.

O que achou de o advogado do presidente, Frederick Wassef, ter ameaçado a jornalista que revelou as gravações? A OAB vai puni-lo?
Assim que isso tudo aconteceu, prestei minha solidariedade à repórter Juliana Dal Piva, do UOL, e, prontamente, também pedi que a Corregedoria da OAB investigasse os fatos por ela relatados. Como sempre, o presidente Bolsonaro e seus apoiadores mostram desprezo pela liberdade de imprensa e partem para intimidação, em especial das jornalistas mulheres.

Qual imagem o Brasil tem passado para o mundo diante do caos sanitário?
O dano à imagem do Brasil tem sido enorme. Basta ver como somos retratados nos fóruns internacionais e pela imprensa do mundo inteiro. Aparecemos como pária internacional. Uma pandemia descontrolada, um governo incompetente, que trouxe aumento expressivo da pobreza e da fome, que ataca a liberdade de imprensa, que abre a porteira para o desmatamento e o garimpo ilegais e que desrespeita os povos indígenas. Em resumo, é um desastre.

O que achou da indicação de André Mendonça para o STF?
O problema é que o processo de indicação de André Mendonça foi transformado pelo presidente da República em um item religioso da sua pauta política. É uma tentativa de atrair o mundo jurídico para um tema que só faz sentido para os objetivos políticos do presidente. Como ministro da Justiça ele deu sinais de subserviência a vontades presidenciais no mínimo controversas do ponto de vista jurídico. Caberá ao Senado exercer seu papel constitucional e aprofundar o debate sobre suas posições jurídicas.