Bolsonaro se torna réu por tentar golpe: o que vem pela frente

Bolsonaro se torna réu por tentar golpe: o que vem pela frente

"BolsonaroBrasil terá o primeiro julgamento de um ex-presidente por tentativa de golpe. Bolsonaro tenta reverter situação, buscando anistia e mudança na Lei da Ficha Limpa.Bolsonaro e sete aliados se tornam réus nesta quarta-feira e vão responder a ação penal pela trama golpista que culminou na invasão e depredação das sedes dos Três Poderes, em Brasília, em 8 de janeiro de 2023, poucos dias após a posse do presidenteLuiz Inácio Lula da Silva (PT).

Após esse primeiro passo, a ação deve se arrastar pelos próximos meses, quando o tribunal ouvirá testemunhas e acusados, analisará provas e fará as demais diligências. Há o risco de que a conclusão do julgamento fique para 2026, o que pode levar a corrida eleitoral a atropelar o rito judicial.

O que pesa sobre os acusados?

O ex-presidente é acusado de cinco crimes: liderança de organização criminosa armada; tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito; golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. As penas podem somar mais de 40 anos de reclusão.

A peça da Procuradoria-Geral da República (PGR) denuncia 34 pessoas, mas o julgamento do STF dividiu os acusados em cinco grupos. Nesta primeira etapa, além de Bolsonaro, a corte também avalia a abertura dos processos contra os ex-ministros Walter Braga Netto (Casa Civil), Paulo Sérgio Nogueira (Defesa), Anderson Torres (Justiça) e o general Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional da Presidência).

Foram implicados ainda Almir Garnier Santos, ex-comandante da Marinha do Brasil, e Mauro Cid, ex-chefe da Ajudância de Ordens da Presidência, além do ex-diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) Alexandre Ramagem.

Quais as etapas do julgamento?

O julgamento está sendo conduzido pela Primeira Turma, composta pelos ministros Cristiano Zanin, Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Flávio Dino e Luis Fux. Na semana passada, a maioria do plenário do tribunal rejeitou pedido da defesa de Bolsonaro e de Braga Netto para afastar Dino, Zanin e Moraes da análise do caso por suspeição.

"É importante que se lembre que o julgamento não está decidindo se há condenação ou não, mas sim se há elementos suficientes para o andamento do processo", ressalta o advogado criminalista Marcelo Crespo, coordenador do curso de direito da ESPM.

O que vem depois?

Se o STF rejeitar as alegações da PGR, o caso será arquivado. Caso contrário, começa uma nova etapa do processo em que serão avaliados os méritos das acusações.

O ordenamento jurídico não prevê a possibilidade de um recurso pelo recebimento da denúncia, de acordo com o advogado Acácio Miranda, especialista em Direito Penal. A defesa, porém, pode lançar mão de um dispositivo conhecido como "embargos de declaração", em que são pedidos esclarecimentos sobre aspectos específicos da decisão.

O cronograma dos passos seguintes é imprevisível, porque o caso envolve múltiplos acusados. Cada equipe de defesa deve empregar estratégias próprias e podem, inclusive, entrar em contradição, o que amplia o prazo de apurações. "É muito provável que o julgamento do mérito não aconteça este ano, então deve entrar no calendário eleitoral", avalia Miranda.

Bolsonaro pode ser preso?

A composição da Primeira Turma do STF torna o cenário "desfavorável" ao ex-presidente, avalia Crespo. No passado, os ministros do colegiado já tomaram decisões que contrariaram Bolsonaro. Moraes, em particular, é alvo frequente de ataques bolsonaristas.

Crespo considera improvável que uma eventual condenação produza uma pena que não leve Bolsonaro à prisão, sobretudo por conta da profundidade das denúncias da PGR ."Mas tudo vai depender do julgamento, de como será a interpretação da turma", pondera.

Na mesma linha, Acácio Miranda vê chances significativas de que o ex-presidente seja condenado. O Código Penal Brasileiro ainda prevê recursos após a decisão e o réu só pode ser preso após o esgotamento de todos eles, cenário conhecido como "trânsito em julgado". "Resta saber o timing disso, o momento dessa condenação. Sendo ele condenado, uma tendência lógica, em circunstâncias normais, é de que ele seja preso", afirma.

Somados todos os crimes pelos quais Bolsonaro foi acusado, a sentença pode chegar a 43 anos de prisão.

Consequências políticas

O processo avaliado pelo STF não afetará diretamente as perspectivas eleitorais, porque Bolsonaro já foi declarado inelegível em 2023 por abuso de poder e uso indevido dos meios de comunicação durante a campanha de 2022. O ex-presidente e Braga Netto estão impedidos de concorrer a cargos eletivos até 2030.

A evolução do litígio, no entanto, terá impacto em outras frentes. Para o cientista político Carlos Pereira, professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV-EBAPE), Bolsonaro perde algum capital político com o imbróglio jurídico, embora o núcleo mais firmes de apoiadores deva manter a lealdade ao ex-presidente.

"Por mais que o julgamento elenque evidências robustas de que houve envolvimento direto de Bolsonaro e seus ministros e vice-presidente na tentativa de golpe, essa parcela da população vai continuar com ele de qualquer maneira", avalia.

Por outro lado, o segmento do eleitorado menos ideológico, que votou em Bolsonaro mais como repúdio ao PT, pode ser negativamente influenciado pela situação. Por isso, Pereira vê o caso como uma "janela de oportunidade" para que a direita encontre uma alternativa para a eleição do ano que vem.

A solidez e a repercussão da ação penal ditarão também a influência de Bolsonaro na escolha de um sucessor. Se ficar comprovado de forma inequívoca o envolvimento na trama golpista, candidatos conservadores independentes do ex-presidente ganhariam mais viabilidade. "Mas se o julgamento não mostrar uma clara conexão, a força política dele continuará sendo relevante", ressalta Pereira.

Denúncias da PGR

Pouco mais de dois anos após os atos golpistas e de um volume expressivo de denúncias e condenações ter atingido a massa de bolsonaristas que invadiu e depredou as sedes dos Três Poderes, em Brasília, em 8 de janeiro de 2023, o sistema de Justiça brasileiro deu mais um passo para avaliar a responsabilização de membros do alto escalão político e militar acusados de comandar uma tentativa de golpe de Estado, entre os quais o ex-presidente Jair Bolsonaro.

Na terça-feira da semana passada, a Procuradoria-Geral da República (PGR) apresentou ao Supremo Tribunal Federal (STF) denúncias contra 34 pessoas, incluindo Bolsonaro, que foi acusado de cinco crimes: organização criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. Somadas, as penas máximas podem chegar a 43 anos de prisão.

As denúncias foram fatiadas em cinco peças, com o objetivo de agilizar a análise pelo STF. No grupo de Bolsonaro, também figuram os ex-ministros Walter Souza Braga Netto (Casa Civil), – que está preso preventivamente –, Paulo Sérgio Nogueira (Defesa), Anderson Torres (Justiça) e Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), o ex-comandante da Marinha Almir Garnier e o ex-diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) Alexandre Ramagem.

Agora, Primeira Turma do STF aceitou a denúncia e tornou Bolsonaro réu. O julgamento do ex-presidente deve transcorrer, pelo menos, até o final do ano, segundo avaliação de especialistas que acompanham o processo.

A Primeira Turma considera ampliar a frequência de suas reuniões – de a cada 15 dias para semanal – para agilizar a análise dos processos e tentar concluir o de Bolsonaro antes de 2026, um ano eleitoral.

O ex-presidente articula em frentes políticas e jurídicas para se defender da denúncia, tentar recuperar sua elegibilidade e se manter como candidato da direita, que já discute nomes alternativos para 2026, como o do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas. O tensionamento com o Supremo faz parte dessa estratégia, e a Corte se virá nos próximos meses em um clima que pode lembrar o do julgamento do mensalão, ocorrido em 2012, analisando um caso complexo e com fortes reflexos políticos.

Em nota, a defesa de Bolsonaro afirmou que "não há qualquer mensagem do Presidente da República que embase a acusação, apesar de uma verdadeira devassa que foi feita em seus telefones pessoais", e classificou a peça da PGR como "inepta" e "baseada numa única delação premiada".

Como Bolsonaro se movimenta

O ex-presidente reuniu-se com congressistas da oposição semana passada em Brasília, antes da apresentação da denúncia, para buscar o apoio de partidos do centrão para duas propostas legislativas que podem indiretamente beneficiá-lo.

Uma delas é perdoar as condenações criminais dos envolvidos nos atos golpistas. Há alguns projetos de lei com esse teor tramitando no Congresso, e o mais avançado aguarda a instalação de uma comissão especial na Câmara para ser analisado.

Outra frente é tentar alterar a Lei da Ficha Limpa para reduzir de oito para dois anos o período de inelegibilidade de políticos condenados por abuso de poder político, abuso de poder econômico ou uso indevido dos meios de comunicação.

Bolsonaro está inelegível até 2030 após ter sido condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral em duas ações distintas: por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação ao atacar o sistema eleitoral em uma reunião com embaixadores do Palácio da Alvorada, e por abuso de poder político e econômico por ter transformado as comemorações do Bicentenário da Independência, em 7 de setembro de 2022, em um comício eleitoral.

Após reunir-se com os congressistas da oposição, Bolsonaro afirmou que a Lei da Ficha Limpa "é usada para perseguir a direita", e citou que os Estados Unidos não possuem uma norma do tipo. "Se tivesse, o [Donald] Trump estaria inelegível", afirmou.

A mudança na lei o beneficiaria, já que a sua atual inelegibilidade começa a ser contada a partir do pleito de 2022, mas no momento há pouca chance de aprovação de uma iniciativa nesse sentido.

Cogitação ou preparação de golpe?

Na seara jurídica, um dos argumentos que devem ser explorados pela defesa de Bolsonaro será afirmar que não houve uma tentativa efetiva de golpe de Estado, e que, portanto, não haveria crime cometido.

Essa linha foi expressa, por exemplo, pelo filho do ex-presidente e senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ): "Por mais que seja repugnante pensar em matar alguém, isso não é crime", escreveu ele no X em novembro, após a Polícia Federal (PF) ter deflagrado uma operação que investigou um plano de execução do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do vice-presidente Geraldo Alckmin e de Alexandre de Moraes.

Para embasar a denúncia contra o ex-presidente, a PGR baseou-se, entre outros elementos, em uma minuta de um decreto golpista localizada na residência de Anderson Torres, em mensagens trocadas entre militares que mencionavam o plano de execução de autoridades, e em documentos apreendidos em dispositivos usados pelo tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro que fez um acordo de colaboração premiada.

Segundo o relatório da PF, a partir de mensagens trocadas por Cid e outros envolvidos na trama, há indícios de que Bolsonaro teria feito ajustes na minuta do decreto golpista, que decretava estado de defesa e criava uma comissão para revisar o resultado das eleições de 2022.

Diego Nunes, professor de direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e organizador de um livro sobre a lei dos crimes contra o Estado Democrático de Direito, avalia à DW ser "pouco provável" que investigações de crimes dessa natureza encontrem frases expressas de autoridades como "façam um golpe de Estado", e que nesse cenário cabe ao Ministério Público apontar um "conjunto de elementos contextuais" que consigam representar uma cadeia de comando e execução para um golpe.

Um desses elementos contextuais pode ter surgido em uma reunião convocada por Bolsonaro com os comandantes das Forças Armadas na qual a apontada minuta do golpe teria sido discutida. Segundo um depoimento à PF do então comandante da Aeronáutica, Carlos Baptista Junior, o então comandante do Exército, Marco Antônio Freire Gomes, ameaçou prender Bolsonaro se ele levasse adiante a ideia de decretar estado de sítio, estado de defesa ou Garantia da Lei e da Ordem (GLO).

"O STF terá de marcar a separação entre atos preparatórios e início de execução. A se confirmar, porém, que houve ordem ao comandante do Exército, será impossível falar em mera cogitação", afirma à DW Davi Tangerino, professor de direito penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Teste para uma lei relativamente nova

Outro aspecto que agrega importância à análise da denúncia contra Bolsonaro é que a lei dos crimes contra o Estado Democrático de Direito, que revogou a Lei de Segurança Nacional da época da ditadura, é relativamente nova, de 2021.

O primeiro caso de político acusado com base na norma foi o do ex-deputado federal Daniel Silveira, condenado pelo STF em abril de 2022 pelo crime de ameaça ao Estado Democrático de Direito.

Em seguida, aponta Nunes, vieram as diversas condenações de bolsonaristas que invadiram as sedes dos Três Poderes. Agora, será a primeira vez que um ex-presidente ou ex-ministros poderão vir a ser enquadrados na nova norma.

"Seria a primeira vez em que um ex-presidente estaria sendo julgado por um tribunal regular por conta do cometimento de uma tentativa de golpe de Estado. O Brasil, na sua história, é farto de tentativas de golpe, principalmente quarteladas feitas pelo pelos militares, mas nunca houve um julgamento desse tipo", afirma.

Ele prevê que isso irá testar o Poder Judiciário, e em particular o Supremo Tribunal Federal, na sua capacidade de conseguir realizar um julgamento imparcial e dentro das regras. "O tribunal vai ter que, estrategicamente, pautar as datas dos atos processuais e do julgamento a ponto de conseguir minimamente se explicar para a opinião pública – porque não bastará para ele apenas fazer justiça, ele vai ter que ser compreendido fazendo justiça. Vai existir uma mediação com a opinião pública, que não se dá de um dia para o outro", afirma.

Tangerino avalia que, tão importante quanto a denúncia contra Bolsonaro, seria a responsabilização de militares de alta patente. "É a primeira vez na história do Brasil e é muito simbólico. Dá importante sinalização de que tentativas de golpe não serão aceitas e não pouparão ninguém."