O presidente Jair Bolsonaro voltou a dizer hoje que o número de mortes por Covid-19 foi exagerado no Brasil, para que governadores pudessem obter mais verbas do governo federal.

Pior ainda, ele voltou a atribuir a informação ao Tribunal de Contas da União (TCU), que o desmentiu ontem e abriu investigação sobre o servidor que inseriu em seu sistema, na calada da noite, o documento em que Bolsonaro se apoiou para contar a  lorota.

Esse é Bolsonaro: pego na mentira, ele dobra a aposta. O presidente parece mesmo seguir um padrão perverso de raciocínio. Por que ser honesto, se posso ser desleal? Por que agir como um presidente, se posso agir como um trapaceiro?

Vejamos passo a passo a declaração de hoje.

“O TCU fez dois acórdãos, não sei por que tiraram do ar, dizendo que o critério mais importante para mandar recursos para estados são as notificações de Covid. O próprio TCU disse que essa prática poderia não ser a mais salutar, porque incentivaria supernotificações.”

Para começar, ninguém tirou acórdão nenhum da internet. Todos os acórdãos do TCU continuam onde sempre estiveram, no site do tribunal. Pelo menos quatro deles, em 2020, trataram do repasse de verbas federais a municípios. Aquele que embasou a tramoia bolsonarista é o 2.817/2020, que faz a seguinte advertência:

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“Utilizar a incidência de Covid-19 como critério para transferência de recursos com base em dados declarados pelas Secretarias Estaduais de Saúde pode incentivar a supernotificação do número de casos da doença, devendo, na medida do possível, serem confirmados os dados apresentados pelos entes subnacionais.”

Vejam só, o TCU está falando de uma prática que “pode incentivar supernotificações”. Bolsonaro já começou a transformar a hipótese em certeza, mas o pior vem na sua frase seguinte.

“Alguns governadores, para receber mais dinheiro, notificavam mais mortes por Covid.”

Não há nenhum acórdão do TCU que diga isso. Muito menos o 2.817/2020. A história de que governadores notificaram mais mortes para receber mais dinheiro não saiu do TCU,  nem de qualquer outra fonte conhecida.

Atenção: nem mesmo o relatório do servidor bolsonarista faz essa afirmação. Diz, pelo contrário, que não há “evidência que essa prática deletéria esteja acontecendo”.

Assim, até prova em contrário, a história dos governadores larápios é invenção do presidente. Uma mentira deslavada que hoje, mais uma vez, ele tentou atribuir ao TCU.

Um presidente que mente cotidianamente na frente do Palácio do Planalto já é ruim o bastante. Mas um presidente que envolve um órgão de fiscalização nas suas mentiras, é contraditado e mesmo assim reincide – isso já é inacreditável. Será que vai ficar por isso mesmo?

Alexandre Figueiredo Costa Silva Marques, o tal servidor do TCU, já começou a se dar mal. No começo da tarde de hoje, foi afastado por 60 dias de suas funções, enquanto corre um processo administrativo.

Mas, ao que tudo indica, ele não agiu sozinho. Mesmo a averiguação estando apenas no começo, já há indícios de que houve um jogo combinado com a família Bolsonaro.

Marques inseriu o seu estudo nos computadores do TCU na noite de domingo – o que tem ares de ação clandestina. Na manhã seguinte o presidente menciona o documento como se fosse coisa oficial. Como o presidente tomou conhecimento do troço? Bem, Marques é amigo dos moleques Bolsonaro. E o próprio Bolsonaro é amigo do pai de Marques, um militar – outro que aparece no noticiário em circunstâncias nada abonadoras.

Estão aí os contornos de uma conspiração mequetrefe, mal feita. Mas, ainda assim, uma conspiração.


Jair Bolsonaro gosta de arrastar instituições para a lama.

Alega que o sistema de votação brasileiro é fraudado, dizendo ter provas que nunca apresenta.

Faz um militar da ativa quebrar uma regra clara do código disciplinar e depois impede o comando do Exército de lhe aplicar uma punição, fazendo pouco da ordem hierárquica.

Decide combater a pandemia com base em apostas irresponsáveis e caprichos políticos e transforma o Ministério da Saúde em piada macabra. (Aliás, disso sim os acórdãos do TCU estão lotados: de referências aos erros de governança do ministério, que não fez planejamento estratégico nem traçou metas, não fez plano de comunicação, não fez testagens, em resumo, não fez nada do que deveria.)

Desta vez, Bolsonaro decidiu usar a autoridade do TCU para legitimar uma de suas patranhas. Repito: é inacreditável. Repito: vai ficar por isso mesmo?


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