O presidente Jair Bolsonaro é capitão reformado, mas talvez enxergue em seus ombros as três estrelas de general de divisão ou as quatro de general de exército — afinal, como ensinou Machado de Assis, sempre há quem julgue que o seu próprio espadim é maior que a espada de Napoleão…

General! Ele, o capitão, feito general do Exército do Brasil! Não, ainda é pouco: mais que general, generalíssimo a comandar também a Marinha e a Aeronáutica, generalíssimo a pairar sobre as três Armas como o foi na Espanha o ditador generalíssimo (como era chamado) Francisco Franco, que golpeou o Estado em 1936 contra o governo da Segunda República, detonando a Guerra Civil e matando cerca de 140 mil pessoas — entre elas, o poeta Federico García Lorca. Quiça Bolsonaro queira ser tão generalíssimo a ponto de nem precisar dar ouvidos à racionalidade, ao bom senso e ao comedimento dos comandantes da ativa e dos colegas da reserva.

Jair Bolsonaro, na condição de presidente da República democraticamente eleito, é o comandante em chefe das Forças Armadas do País. Isso não se discute e ele tem de ser respeitado com todo o respaldo da Constituição que o investe de tal função. Mas, ainda assim, até pelo apreço que sempre diz ter pelas instituições militares (ele gosta mais dos militares do que os militares gostam dele), o presidente poderia banir de seu vocabulário os elogios a golpes de Estado, a regimes de exceção e a governantes autoritários.

E sequer ter cogitado dar ênfase nos cinquenta e cinco anos do golpe militar de 1964, que se completam no domingo 31. Bolsonaro vai, no entanto, pela trilha completamente oposta.

Com amplo apoio de setores da chamada sociedade civil, os militares rasgaram a Constituição do Brasil no dia 31 de março de 1964, derrubaram do poder o presidente João Goulart, eleito legitimamente como vice de Jânio Quadros e que assumira o governo após a renúncia do titular, em agosto de 1961. Em meio à anomia, o País caminhava para uma república sindicalista e os militares que intervieram prometeram eleições livres e diretas. Não o fizeram e só deixaram o Planalto em 1985. Bolsonaro tinha apenas nove anos de idade quando houve o golpe e trinta quando ocorreu a redemocratização do País. Ele cresceu, portanto, sob a ditadura, esteve por onze anos no Exército e é impossível que não saiba o inferno ao qual desceu o Brasil por vinte e um anos: centenas de oponentes ao regime foram torturados e mortos, corpos desapareceram, olhos foram vazados, fraturas se arrastaram no interior de celas, pulmões estouraram com a forçada inalação de fumaça de óleo diesel. O Congresso foi fechado, e a imprensa, censurada. Houve uma diáspora da intelectualidade, o País culturalmente empobreceu. Todas essas atrocidades, Bolsonaro chama de “probleminhas”.

Assim que assumiram o poder, tiveram os militares a esperteza de decretar um ato institucional que lhes dava o poder originário constituinte para, como tais, legitimarem o próprio golpe. Todos que estavam no comando expuseram o mesmo pensamento e, como disse o escritor americano Walter Lippmann, “sempre que muita gente tem a mesma ideia é porque ninguém sabe pensar”. Atualmente, para que as coisas andem para frente como devem andar, o primeiro escalão da ativa das Forças Armadas prefere que o dia 31 de março seja lembrado dentro dos quartéis, mas com bastante discrição e comedimento. Esse é também o desejo dos generais da reserva que integram o governo (há cento e um militares na Esplanada dos Ministérios, número recorde).

O presidente, no entanto, segue a chamar o golpe de “data histórica” e pouco ouve seus pares, temerosos de que o entusiasmo demasiado conturbe ainda mais o clima de algazarra, de desentendimentos e de ânimos exaltados que tomaram conta dos três poderes republicanos.

As próprias Forças Armadas têm evitado cada vez mais se referir ao passado, frisando que no presente manterão o compromisso constitucional de assegurar as instituições — e deixam claro que a elas não interessa tecer loas ao golpismo de mais de meio século atrás. Pelo menos até a quinta-feira 28, tudo isso pouco adiantava. Bolsonaro unificara as ordens do dia nos quartéis e o texto que começou a ser preparado uma semana antes tratava das “lições aprendidas” (que lições? Aprendidas por quem?) sem sequer resvalar em uma autocrítica das casernas. O presidente recomendara ao Ministério da Defesa o que chamou de “comemorações devidas”, mas o ministro, general Fernando Azevedo, rejeitou o termo “comemorações”. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (cujo pai, Cesar Maia, foi torturado na ditadura), adiantou que a Casa não celebrará a data. A Defensoria Pública da União ajuizou ação contra qualquer festividade. O MPF também cogitava tomar medidas legais nesse sentido.

Se Jair Bolsonaro pensa que agrada as Forças Armadas exaltando o arbítrio, engana-se muito. No Brasil, o alto comando militar não vê com bons olhos, hoje, a sua paixão pela derrubada da democracia em 1964. Bolsonaro é uma voz isolada, por exemplo, a encomiar e exaltar o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou o DOI-Codi do II Exército, porão da ditadura em São Paulo onde morreram presos políticos — dentre eles, Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho. Mais: foi péssima a repercussão da recente fala de Bolsonaro aos fuzileiros navais, no aniversário de duzentos e onze anos de instituição da tropa, na qual ele, autoritariamente, submeteu a democracia e a liberdade à tutela militar. O capitão foi quem falou mas as palavras acabaram entalando mesmo na garganta do alto comando. Mais ainda: no domingo 24, um dia após a visita de Bolsonaro ao Chile, o presidente Sebastián Piñera, empedernido conservador, o criticou pelo fato de ele falar bem da sanguinolenta ditadura do general Augusto Pinochet (Bolsonaro também gosta de recordar o ex-ditador paraguaio Alfredo Stroessner). Quando alguém é criticado por Piñera porque exaltou a direita, é porque esse alguém, realmente, passou dos limites.

Em vez de enaltecer Ustra e o golpe de 1964, melhor seria que Bolsonaro valorizasse algumas atitudes do general Ernesto Geisel, penúltimo presidente do ciclo ditatorial (o último foi João Figueiredo, que preferia o cheiro de cavalo ao cheiro do povo, e saiu pela porta dos fundos do Palácio do Planalto para não transferir a faixa presidencial a José Sarney). No dia 17 de janeiro de 1976, o operário Manoel Fiel Filho “suicidou-se” no Doi-Codi. O então governador paulista Paulo Egydio Martins telefonou para o presidente Geisel, que lhe respondeu: “não se mexa. O senhor terá notícias”. No dia seguinte, Geisel desembarcou em São Paulo e exonerou o comandante do II Exército Ednardo D’Avila Mello. O general Geisel foi, assim, determinante para sepultar a ditadura que o capitão Bolsonaro vive bendizendo.