O governo Jair Bolsonaro está tentando assobiar e chupar cana ao mesmo tempo – uma impossibilidade, como se sabe. 

Tem a ver com o novo programa de transferência de renda da União, aquele que pretende substituir o Bolsa Família e o auxílio emergencial a partir de 2021.

Cercado de vários  minions, entre ministros e parlamentares do Centrão, o presidente anunciou na manhã de hoje que decidiu qual será a fonte dos recursos para os pagamentos do agora chamado Renda Cidadã. 

Ele pretende retirar o dinheiro de duas fontes: a reserva orçamentária destinada ao pagamento de precatórios e a parcela do governo federal devida ao Fundeb, o fundo de financiamento da educação básica. 

Com isso, não haveria ruptura do teto de gastos, o que levou Bolsonaro a se congratular. “Queremos demonstrar à sociedade, aos investidores, que o Brasil é um país confiável”, disse ele. 

Não é bem assim.

Precatórios são requisições de pagamento emitidas pela Justiça contra os cofres públicos, quando o Estado perde uma disputa legal e se torna devedor de alguém. Todo ano, o governo reserva dinheiro para pagar essas dívidas com cidadãos e empresas. A intenção é reduzir drasticamente essa reserva – que seria da ordem de 55 bilhões de reais no ano que vem, mas deve cair para algo como 20  bilhões caso a proposta seja aprovada no Congresso. 

Isso significa que muita gente que está na fila para receber seu precatório (vamos repetir: um crédito reconhecido pela Justiça) pode ter o pagamento postergado, e ficar de mãos abanando em 2021. Isso se chama calote. 

Aí está. O governo quer dar um calote e ser confiável ao mesmo tempo. Assobiar e chupar cana. 

É preciso reconhecer, no entanto, que a solução é politicamente esperta.

Pela média histórica de pagamentos, não devem ser atingidos os “precatórios alimentares”, que têm prioridade e se originam em processos que discutem salários, pensões e benefícios previdenciários. O que deve ficar para as calendas são os precatórios comuns, relacionados, por exemplo, a desapropriações.

Assim, ao contrário do que acontecia em hipóteses anteriormente estudadas pelo governo, como aquela que congelava benefícios sociais de aposentados para financiar o Renda Cidadã, nenhum grupo social claramente identificável será penalizado. Será atingido um trouxa genérico, credor de um dinheiro que o governo vai pagar um dia desses, quando der. 

Vejamos se a oposição consegue fazer barulho em torno do assunto. Não há dúvida que é calote. E de um tipo que tem longo histórico no Brasil, embora esteja associado principalmente às dívidas de Estados e municípios. Bolsonaro quer que a União adote o mesmo padrão de comportamento inconfiável dos outros entes da federação. 

Falando agora da outra fonte de financiamento prevista para o Renda Cidadã, ela tem todo o jeitão de ser fruto da teimosia do ministro da Economia Paulo Guedes. 

O governo, lembremos, teve um comportamento calhorda durante a discussão do Fundeb no Congresso. Primeiro, se ausentou completamente do debate, que deveria ter sido conduzido por aquele sujeito que foi anti-ministro da Educação e hoje ocupa um cargo em um organismo internacional. Então, na véspera da votação, apareceu com uma proposta rabiscada pela equipe econômica, que zerava os recursos federais do fundo em 2021, para só retomá-los no ano seguinte. O Fundeb é a principal fonte de recursos para a educação básica no Brasil. 

A proposta do governo foi devidamente jogada no lixo, mas agora a ideia de cortar recursos do fundo retorna. É parecido com o comportamento obsessivo-compulsivo que Paulo Guedes cultiva em relação à nova CPMF, que deseja emplacar a todo custo.

Escrevi na semana passada que a votação do Renda Cidadã seria a batlaha da década, pois o programa pode garantir a reeleição a Bolsonaro. O presidente já pôs o exército em campo.