Alvo de inquérito da PF no caso Covaxin, presidente insinuou haver distinção na esfera penal entre o chefe do Executivo e demais servidores públicos. Para juristas ouvidos pela DW Brasil, interpretação é equivocada. O presidente Jair Bolsonaro reagiu com incredulidade à abertura de um inquérito pela Polícia Federal para investigar se ele prevaricou no caso das supostas irregularidades na negociação da vacina indiana Covaxin. “O que eu entendo que é prevaricação se aplica a servidor público e não se aplicaria a mim”, afirmou ele nesta segunda-feira (12/07).

Na declaração, Bolsonaro pressupõe a existência de uma distinção entre o chefe do poder Executivo e demais funcionários públicos. Amparados em artigos do Código Penal e da Constituição Federal, juristas ouvidos pela DW Brasil afirmam consensualmente que a interpretação é equivocada.

Bruno Seligman de Menezes, professor de Direito Penal na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), lembra que o direito administrativo conceitua os agentes públicos em um sentido amplo. Entre eles está o agente político, que se investe em um cargo público por meio de uma eleição, designação ou competência constitucional.

“É o caso dos chefes do poder Executivo, membros do Legislativo, Judiciário e ministérios públicos. Ou seja, não há dúvida que a chefia do poder Executivo federal é um agente político. A Lei 8.429, de improbidade administrativa, deixa isso claro”, diz.

Pelo artigo 2º da referida lei, é considerado agente público todo aquele que exerce cargo ou função pública nos poderes da União, dos estados ou municípios, “ainda que transitoriamente ou sem remuneração”.

A definição do Código Penal

O Código Penal brasileiro, de 1940, é muito anterior à Constituição Federal de 1988. Portanto, certos conceitos não estão moldados à estrutura constitucional vigente. Ainda assim, no artigo 327, o texto deixa claro que políticos em cargos eletivos estão sujeitos às mesmas condições penais dos demais servidores.

“Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública”, diz o Código.

Fazendo referência ao artigo do Código Penal em questão, o advogado criminalista Augusto de Arruda Botelho afirma que a interpretação de Bolsonaro está equivocada. “É importante dizer que isso diz muito sobre a gestão do governo atual, em que o presidente da República não se considera funcionário público”, critica.

Antonio Santoro, professor de Direito Processual Penal na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), enxerga uma manifestação do autoritarismo de Bolsonaro por trás de sua declaração.

“O autoritarismo é precisamente a compreensão de que quem exerce o poder não se submete às regras, e só têm direito aqueles a quem o exercente do poder concede esse benefício. Bolsonaro tem exatamente essa visão. Nesse sentido, ele entende que as regras de direito não se aplicam a ele, inclusive as de direito penal”, afirma.

O inquérito da PF

A abertura de inquérito pela Polícia Federal nesta segunda-feira partiu de um pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR), feito no dia 2 de julho, com autorização do Supremo Tribunal Federal (STF).

O inquérito será conduzido pelo Serviço de Inquéritos Especiais (Sinq) da PF, porque Bolsonaro tem foro privilegiado. O prazo inicial para conclusão das investigações é de 90 dias, mas pode ser prorrogado.

A investigação é motivada pelo depoimento do servidor do Ministério da Saúde Luis Ricardo Miranda, chefe de importação do Departamento de Logística, e seu irmão, o deputado federal Luis Miranda (DEM-DF), à CPI da Pandemia no dia 25 de junho. Na ocasião, eles afirmaram ter informado Bolsonaro, em março, sobre suspeitas de corrupção na negociação da vacina indiana Covaxin.

Nesta segunda-feira, o presidente quebrou o silêncio sobre o caso e confirmou que foi alertado pelos irmãos Miranda, tendo repassado as informações ao então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello.

“Falei com Pazuello, foi visto que tinha inconsistências no pedido e passei para frente os papéis que ele [Miranda] deixou lá”, disse o presidente em coletiva de imprensa.

O crime de prevaricação, pelo qual o presidente é investigado, consiste em “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”. Bruno Seligman de Menezes explica tratar-se de um crime contra a administração pública, de menor potencial ofensivo, que só pode ser praticado por um funcionário público.

“Todo crime com pena inferior a dois anos se processa segundo os juizados especiais criminais, o que garante ao autor do fato uma série de benefícios para que o processo não chegue ao fim”, comenta.

Finalidade do ato é determinante

Embora contraponha-se à narrativa de Bolsonaro sobre a distinção entre o presidente da República e demais servidores públicos, Seligman é cauteloso ao analisar supostos indícios de prevaricação por parte do presidente da República no caso Covaxin.

O professor da UFSM ressalta que tal caracterização só pode ser confirmada se houver o “especial fim de agir”, nos termos do direito penal. Ou seja, a clara demonstração de que o cometimento do ato, ou a omissão de sua realização, teve a intenção de satisfazer um sentimento ou interesse pessoal.

“Se essa finalidade não for demonstrada, a prevaricação está descaracterizada. Não há crime. A simples ocorrência de um fato, por si, não nos autoriza a concluir se houve ou não prevaricação”, explica.

Na mesma linha, Augusto de Arruda Botelho afirma não dispor de elementos suficientes no momento para avaliar se Bolsonaro incorreu no crime pelo qual é investigado.

“É preciso que haja uma investigação, que deve acontecer, a colheita de depoimentos e demais provas, para então se chegar eventualmente a uma conclusão. Os elementos divulgados pela imprensa até agora não me permitem confirmar ou negar essa possibilidade”, afirma.

Antonio Santoro, por sua vez, destaca que a eventual vantagem recebida por Bolsonaro pode não ter sido financeira, mas política, como a garantia de apoio do Centrão no Congresso.

“O que eu não tenho certeza é se ele de fato prevaricou ou se ele praticou corrupção. A meu ver, receber uma informação de que um crime esteja sendo cometido e não tomar providências pode ser prevaricação, mas pode ser corrupção passiva em várias formas”, diz o professor da UFRJ.