Há duas maneiras de reagir à chantagem. Uma é ceder e entregar ao chantagista aquilo que ele deseja, mas não merece ter. A outra é fazer como Isabela na comédia Medida por Medida, de William Shakespeare. 

Na peça, Ângelo assumiu temporariamente o governo de Viena e baixou uma lei proibindo a fornicação. Cláudio é pego na cama com uma donzela e vai preso. Isabela, sua irmã, procura o governador para saber o que vai acontecer. Descobre que Cláudio foi condenado à morte, mas talvez possa ser salvo, se uma certa vontade de Ângelo for satisfeita… Como é ingênua, Isabela demora a entender as intenções do vilão. Ele precisa lhe dizer com todas as letras que só vai libertar Cláudio se Isabela se deitar com ele. Eis a resposta da moça: 

“Hipocrisia, tudo hipocrisia! Cuidado, Ângelo! Vou desmascarar você! Assine logo a liberdade do meu irmão, ou, com toda a força dos meus pulmões, vou gritar por esse mundo que espécie de homem você é.”

Pois bem. Na manhã desta quinta-feira, Jair Bolsonaro acrescentou a chantagem à sua folha corrida. Em vez de aceitar o preço que ele exige, prefiro vestir o figurino de Isabela (como faziam os atores do sexo masculino no tempo de Shakespeare) e sair gritando por aí.

Para variar, o presidente falava com apoiadores diante do Palácio do Planalto. Pediram sua opinião sobre a invasão do Capitólio por fanáticos pró-Trump, na tarde de quarta-feira, e ele respondeu: “Se nós não tivermos voto impresso em 2022, uma maneira de auditar o voto, vamos ter problema pior que os Estados Unidos.”

Parêntese: Essa foi a única reação de Bolsonaro aos acontecimentos de Washington. Enquanto governantes sérios do mundo todo repudiaram de maneira enfática o incidente,  Bolsonaro tratou o caso como se fosse normal, aceitável. Foi a demonstração rematada de como age um antiestadista.  

Mas voltemos à chantagem. Será que Bolsonaro não estava apenas fazendo uma análise fria das circunstâncias políticas brasileiras? 

É claro que não. Ele estava mobilizando o fantasma de um levante popular nas eleições de 2022 para ver se um Congresso e um Judiciário amedrontados cedem à sua vontade e adotam o voto impresso, uma de suas obsessões. 

Na verdade, é pior que isso. O presidente não se limita a tentar assustar as crianças com o fantasma, ele trabalha ativamente para criar um monstro de carne e osso. Ou seja, assim como Donald Trump nos Estados Unidos, ele faz tudo que pode para minar a confiança no sistema de votação brasileiro. Alega que houve fraude contra ele nas eleições de 2018, sem jamais mostrar os indícios. Tenta convencer os incautos de que a desconfiança contra as urnas eletrônicas é universal. 

Bolsonaro deseja criar confusão onde ela não precisaria existir. Segundo o Datafolha, 73% dos brasileiros confiam nas urnas eletrônicas. Dentre os que desconfiam do sistema digital, somente um terço segue fielmente a cartilha do bolsonarismo. O presidente que odeia minorias está tentando impor a vontade da sua minoria de estimação a todos os cidadãos. 

Bolsonaro afirma que as votações precisam ser auditáveis. E quem disse que o sistema eletrônico não é auditável? Como todo software, o das urnas brasileiras mantém um registro de atividades. Qualquer interferência no sistema ficará registrada, e será captada por uma auditoria técnica. A premissa de Bolsonaro é falsa. Ignorância sobre o beabá do mundo digital não é desculpa para gastar milhões de reais do contribuinte mudando desnecessariamente um sistema que funciona bem, é seguro – e auditável. 

Mas será que é tão ruim assim a ideia de adicionar um comprovante impresso ao voto eletrônico? Um papelzinho que ficaria sob a guarda da Justiça Eleitoral, para ser consultado em caso de necessidade? Como disse o próprio Bolsonaro, “será que isso é pedir muito”?  

Há muitas razões para resistir à pressão do presidente. A primeira já foi mencionada: não se gasta dinheiro público, sempre tão escasso, com coisas desnecessárias. Em segundo lugar, o voto impresso aumenta, em vez de diminuir, as possibilidades de fraude: os papeizinhos podem ser falsificados, destruídos, desviados – criando impasses insolúveis na apuração das eleições. Finalmente, ceder a uma chantagem encoraja o chantagista a tentar de novo. 

Não, o voto impresso não deve ser adotado no Brasil. E sabemos que lá na frente, se os terroristas da urna eletrônica de fato se levantarem, não terá sido por geração espontânea. Eles serão uma cria de Jair Bolsonaro, assim como os radicais que depredaram o Capitólio e causaram a morte de uma mulher nos Estados Unidos são cria e responsabilidade de Donald Trump.