Para Affonso Celso Pastore, um dos economistas mais importantes do País, os graves equívocos da atual política econômica se somam a outros erros históricos, como a “nova matriz econômica” de Dilma Rousseff. “Atualmente, não há governo. Há um não governo”, sentencia ele, que acabou de lançar o livro Erros do passado, soluções para o futuro (ed. Penguin). Para ele, a ausência completa de uma agenda econômica de Jair Bolsonaro e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, fez com que não houvesse avanços no que era urgente: as reformas tributária e fiscal. Os dois nem realizaram o que eles mesmos prometeram durante a campanha eleitoral, como as privatizações. Para Pastore, que presidiu o Banco Central de 1983 a 1985 e lecionou na FEA/USP e na FGV, tudo isso contamina não só o presente, mas também o futuro. “O ano que vem será extremamente difícil”, critica, lembrando que a inflação atual é a mais alta em meia década e que o Brasil enfrentará em 2022 um crescimento pífio. Tudo fica ainda pior com as tentativas de driblar a responsabilidade fiscal.

O sr. critica em seu livro as narrativas econômicas politicamente atraentes que fracassam. É o caso de Paulo Guedes?
Esse governo não tem nem a narrativa. O presidente venceu as eleições com uma equipe econômica propondo reformas, mas não fez nenhuma, exceto a da Previdência. Havia todo um programa de privatizações que não aconteceu. Quando fizeram a da Eletrobras, havia tantos defeitos que era melhor que não tivessem feito. A mesma coisa se vê agora: é um governo também sem programa para a retomada econômica.

Por que a narrativa do Estado mínimo, que jamais havia chegado com tanta força ao poder, tornou-se hegemônica no debate econômico?
Se essa for a narrativa desse governo, então ela fracassou. O fato é que houve muita decepção com Dilma Rousseff. A experiência da “nova matriz macroeconômica” foi uma das piores que poderiam ter acontecido. Levou o País a uma longa e profunda recessão em 2014, da qual ainda não nos recuperamos. Naquele momento surgiu Jair Bolsonaro falando do Estado mínimo — e a sociedade se enganou na escolha. A população fez uma opção pensando que havia um programa, até porque Paulo Guedes é muito competente na transmissão de ideias, mas tem capacidade nula em realizá-las. Além disso, Bolsonaro chegou ao poder já em campanha para se reeleger em 2022.

Paulo Guedes está promovendo populismo econômico?
Se populismo econômico for gastar sem ter recursos, então a resposta é sim. Na pandemia, Bolsonaro criou um falso dilema entre economia e lockdown. Depois, elaborou um auxílio emergencial que deveria ser pago para desempregados ou para quem perdeu renda, o que daria cerca de 30 milhões de pessoas. O governo, ao contrário, pagou R$ 600 por mês a 66 milhões de pessoas. Foi o dobro do que precisava. Isso também é populismo. Em resumo, o governo Bolsonaro se omitiu de tomar as medidas sanitárias para evitar um alto número de mortes e gastou demais para aumentar sua popularidade e angariar votos.

Quais erros do passado estão se repetindo?
São necessárias reformas que permitam ao governo economizar. O Estado pode ser grande, desde que seja eficiente e tenha receitas. Houve uma tentativa de ajuste no passado, mas desapareceu totalmente. A reforma administrativa, por exemplo, foi arquivada. O governo está pensando em mudar a Constituição para encontrar algum buraco para gastar.

A indústria pode voltar a crescer?
É outro erro: não fizemos a produtividade média da mão de obra crescer para, assim, subir a renda per capita. A Coreia do Sul, por exemplo, tinha uma renda per capita menor do que a brasileira nos anos 1960. Eles introduziram competição na indústria, tiraram barreiras de importação e se voltaram para a exportação. Hoje, esse país tem uma renda per capita igual à do Reino Unido. Enquanto isso, o Brasil continua na cantilena de proteger sua indústria.

E quais são os erros que só este governo cometeu?
O grande erro é que não há nenhum programa de governo. Não há avanços nas reformas fiscal e tributária e nem na abertura da economia. Especialmente neste caso, não dá para fazê-la a seco: é preciso gerar um contexto para que a indústria absorva a competição. Uma dessas medidas seria tirar distorções do sistema tributário. E aí reside um erro grave, porque existe no Congresso uma proposta que, entre os economistas, é consenso em se tratar da mãe das mudanças: a reforma tributária. Ela permitiria abrir a indústria, baixar tarifas e expô-la à competição, mas hoje está morta. Ao contrário, o governo primeiro quis fazer uma CPMF trocando o nome. Depois pensou em outro imposto.

A mudança do Imposto de Renda dificulta as reformas?
Ela veio cheia de defeitos. O governo havia ganhado de presente uma proposta tecnicamente boa, já negociada no Congresso e que simplificava a barafunda de arrecadação de impostos. Não é nem dizer que se trata de um erro do passado: é se omitir de uma questão importantíssima para o futuro do País, o que é muito mais grave do que os equívocos de governos passados.

Uma das lições do seu livro é que decisões equivocadas têm impactos de longo prazo. Quais serão as consequências dos erros de agora?
Nós tivemos um “bônus demográfico” no passado que fazia com que muitos jovens chegassem ao mercado de trabalho, aumentando o emprego e a produção. Esse bônus acabou. Para poder crescer daqui em diante, só aumentando produtividade. Mas nós estamos crescendo, desde a recuperação da recessão, a partir de 2016, cerca de 1% ao ano. Se a população está crescendo a um ritmo de 0,8% ao ano, então a renda per capita está subindo 0,2%. Ou seja: demorará 350 anos para que se duplique a renda per capita da sociedade brasileira.

E no curto prazo? O que esse governo tem feito de errado que impactará já nos próximos anos?
Podemos falar já do ano que vem. A inflação está acima de 10% e, por causa disso, vamos entrar em 2022 com uma alta taxa de juros. A economia, que já tinha pouca capacidade de crescer, ficará praticamente estagnada. Além disso, chegaremos lá com 13% de taxa de desemprego o que, crescendo a 1%, significa que vamos crescer muito lentamente. Tudo isso em um ano eleitoral. Será um ano extremamente difícil para a economia brasileira. Pode até ser que, do próximo governo em diante, algo mude. Mas o final dessa gestão será muito difícil.

Por que a economia está tão deteriorada?
Porque não há governo. Há um “não governo”.

O BC demorou para aumentar os juros mesmo com a inflação acelerando?
O BC agiu de forma tímida. Na chegada da Covid, quando se baixou a taxa de juros, ninguém sabia direito quanto tinha que baixar. No entanto, ele foi lento quando começou a normalizar a política monetária, fazendo com que a inflação se generalizasse. O índice de difusão, que mostra a porcentagem de preços em alta, está em 70% hoje. Ou seja: trata-se de um fenômeno inflacionário generalizado. O Banco Central terá que manter a taxa de juros alta durante todo o ano de 2022. Ele vai conseguir controlar a inflação, mas isso vai levar a um desempenho medíocre do PIB.

O teto de gastos é necessário? Se não for, como a responsabilidade fiscal pode ser garantida?
É muito menos custoso para o País fazer um programa de austeridade fiscal controlando gastos do que aumentando receitas. O teto de gastos foi um gesto para catalisar forças políticas na direção de controlar gastos. Mas não se trata de uma varinha de condão. O que resolveria o problema seria o controle efetivo dos gastos. Para fazer isso são necessárias reformas e, como elas não foram feitas, estamos só brincando de faz de conta, fingindo que temos uma regra fiscal. Pior: quando esse governo precisa aumentar despesas, ao invés de fazer as reformas, ele busca mudar a Constituição para gastar mais.

É o caso dos precatórios?
Sim. O governo quer usar mais dinheiro, então está querendo emendar a Constituição para postergar esses pagamentos. Acho que vai conseguir aprovar. Ao invés de controlar os gastos, ele muda a regra do jogo.

Não pagar os precatórios, como ameaça o governo, é pedalada fiscal?
A pedalada é passível de ser condenada porque é um crime de responsabilidade. Agora, se a Carta for reformada, não é mais pedalada. Estão fazendo com a Constituição o que eles querem. Para mim, a lei máxima do País precisa ser respeitada. O Legislativo e esse governo, ao contrário, acham que não.

Qual modelo deveria ser adotado levando em conta os equívocos do passado e os atuais?
O mundo teve sucesso, inclusive a China, por meio de estímulos ao mercado e com o Estado corrigindo distorções. Não existe um modelo pronto. Para crescer, o País precisa aumentar a produtividade da mão de obra. Isso se faz aumentando a densidade de capital por cada trabalhador empregado ou com inovações tecnológicas. Além disso, é necessário permitir retorno aos inovadores. Hoje, quando alguém quer inovar, depara-se com outro competidor que tem uma tecnologia antiga, mas que domina o mercado. É este sujeito que vai a Brasília e faz com que o governo gere um incentivo para inibir a entrada do seu novo concorrente.

Essa é uma das razões do baixo crescimento?
Isso não pode existir em modelo de desenvolvimento. É preciso dar oportunidades para que os inovadores entrem no mercado e aumentem a produtividade. A China fez isso com um partido comunista no poder, apesar dos defeitos. Os EUA são assim, da mesma forma que a Europa, a Rússia, a Austrália e a Coreia do Sul. É preciso ter uma forma de capitalismo que permita que a criatividade gere inovações e, com isso, aumente a produtividade.