O deputado federal bolsonarista Filipe Barros (PSL-PR) apresentou nesta quarta-feira um novo relatório e um texto substitutivo para a PEC 135/19, que prevê a adoção do voto impressoA íntegra do documento pode ser encontrada no site da Câmara. Sua leitura deixa claro que a tropa bolsonarista já não deseja ver o projeto aprovado, nem na comissão especial que deve votá-lo hoje, nem no plenário da Casa. Quer apenas conturbar o ambiente político – como sempre, aliás.

Por que digo isso? Porque o relatório, além de conter diversos itens que logo à primeira vista parecem inconstitucionais, é de uma radicalidade que não deixa margem para acomodações. Ele não leva em conta as preocupações de quem trabalha na Justiça Eleitoral (não estou falando aqui de Luiz Roberto Barroso, mas dos muitos profissionais que há décadas se dedicam a fazer eleições no Brasil). Nem tampouco objeções de políticos e pessoas comuns que até acham boa ideia o retorno da cédula de papel, mas desconfiam das intenções de Bolsonaro.

Uma proposta que não busca um meio termo nem faz quaisquer concessões existe apenas para marcar posição. Não quer ser aprovada.

Comecemos pelo relatório. A rigor, a comissão da Câmara deveria tê-lo votado em 16 de julho, antes do recesso parlamentar. Isso não aconteceu por causa de uma manobra vergonhosa de seu presidente, o também bolsonarista Paulo Eduardo Martins (PSC-PR), que encerrou aquela sessão de surpresa e, na prática, deu prazo para que Filipe Barros refizesse seu texto. A justificativa foi que o relator desejava contemplar sugestões feitas por outros membros do colegiado  – inclusive gente de esquerda como Ivan Valente, Arlindo Chinaglia e Fernanda Melchionna.

Isso abriu expectativa de que talvez viesse um texto abrandado. Que nada. O relatório é de um cinismo impressionante, e transforma argumentos contra o voto impresso em argumentos para justificar que a apuração seja feita exclusivamente pelo método manual.

Vejam só: os deputados Arlindo Chinaglia, Odair Cunha e Carlos Veras diziam que a contagem das cédulas impressas por meio de um scanner ou aparelho semelhante não aumentaria a segurança da apuração. Diziam isso para reiterar sua posição, que rejeita o uso dos comprovantes em papel. Barros agradece o alerta e vira de ponta cabeça a lógica dos colegas. Para ele, Essa história de tecnologia é mesmo um horror. Apuração boa é aquela que por décadas gerou fraudes eleitorais: a contagem manual de papeizinhos que vira e mexe sumiam, sendo inclusive engolidos por quem os estava contando.

Difícil achar outra palavra para descrever esse tipo de comportamento que não seja: molecagem.

Vejamos agora as inovações do projeto substitutivo. Barros pleiteia que não haja apuração eletrônica dos votos, como acontece hoje – um método que permite conhecer os resultados no mesmo dia do pleito. A apuração deve ser feita exclusivamente pelo método manual. Só quando todos os boletins estiverem prontos ele admite que haja uma “totalização” eletrônica. Ou seja, o deputado generosamente autoriza os brasileiros do século 21 a usar uma calculadora para chegar às somas finais. Ninguém será obrigado a usar um ábaco ou fazer as contas em papel de padaria.

Quando se trata de bolsonarismo, o que é ruim sempre pode piorar. Assim, Barros enfia a Polícia Federal no processo eleitoral. Faz da seguinte forma: “Investigações sobre o processo de votação devem ser conduzidas de maneira independente da autoridade eleitoral pela polícia federal, sendo a justiça federal de primeira instância do local da investigação o foro competente para processamento e julgamento, vedado segredo de justiça.”

Investigações eleitorais são hoje conduzidas pela Justiça Eleitoral, um dos braços do poder Judiciário. Barros quer que a PF, que é subordinada ao Poder Executivo, também tenha poder para fazer essas apurações. Ou seja, um presidente da República candidato à reeleição poderia ter o seu inquérito de estimação para se contrapor ao do Judiciário. Os americanos que inventaram a teoria dos pesos e contrapesos devem estar se revirando no túmulo. Não é preciso ser formado em Direito para perceber que essa ideia é inconstitucional. Não é preciso pensar muito para perceber que ela é perigosa e antidemocrática.

Vamos agora à cereja do bolo. Barros propõe uma emenda na Constituição, invalidando o princípio de que mudanças no processo eleitoral têm de ser instituídas no máximo um ano antes do próximo pleito. Segundo Barros, isso só deve valer para mudanças que “interfiram na paridade entre os candidatos”. Esse não seria o caso da impressão do voto. Assim, ela poderia ter implementação imediata. Mesmo que fosse aprovada, digamos, em maio ou julho do ano que vem, valeria para as eleições de 2022.

Interessante observar que Barros não menciona nenhum jurista, nenhuma autoridade em Direito eleitoral ou constitucional, para propor essa inovação conceitual. A mudança revolucionária é fruto exclusivo da sua “reflexão acerca da necessidade (ou não) de vacância para dispositivos normativos que afetem eleições”. André Mendonça, o candidato de Bolsonaro ao STF, deve estar com inveja de tanta criatividade.

Vamos repetir: isso é palhaçada, molecagem. Não há chance de que uma emenda constitucional desse tipo seja aprovada com maioria de dois terços na Câmara e no Senado. Não há base constitucional para que a PF se meta nas eleições. Não há motivo plausível (que não seja criar balbúrdia) para uma apuração exclusivamente manual dos votos.

Todas essas impossibilidades levam a uma conclusão: os bolsonaristas desistiram de aprovar o voto impresso. Como o substitutivo de Filipe Barros deixa claro, decidiram brigar apenas no plano da antipolítica. Eles vão insistir na deslegitimação do processo eleitoral. Vão continuar se chocando com o Judiciário e tentando transformar personagens como Luís Roberto Barroso em bicho-papão. Seguirão mostrando Jair Bolsonaro, esse anjo de candura, como alvo de gente mal intencionada que deseja afastá-lo da Presidência da República.

Nada disso é brincadeira. Bolsonaro quer confronto e caos. Será preciso trincar os dentes e responder à altura.