Foram seis meses de trabalho. Ou, mais detalhadamente, quatrocentas horas, nas quais a CPI do Senado, instaurada para apurar o descaso do governo federal com a pandemia no País, colheu depoimentos, ouviu testemunhas e acusados, e descobriu gravíssimos fatos que vão da omissão à ação, todos com envolvimento direto ou indireto do Palácio do Planalto – fatos, esses, que fizeram o Brasil chegar ao triste e trágico número de mais de seiscentos mil mortos. À frente da CPI, como seu presidente, esteve o senador Omar Aziz (PSD-AM). Na semana passada, o relatório final foi aprovado e ele pôde falar que sua missão estava cumprida. Na verdade, bem cumprida. Com provas robustas, a CPI registrou e encaminhou à Procuradoria-Geral da República o pedido de oitenta indiciamentos: duas empresas e setenta e oito pessoas, entre elas o presidente da República, Jair Bolsonaro, a quem o texto responsabiliza por nove crimes ­— entre eles, os de epidemia com resultado de morte e emprego irregular de verba pública. Também foi requisitado o indiciamento de seus três filhos, de quatro ministros e dois ex-ministros da gestão bolsonarista. Aziz é incisivo: “Bolsonora tem de ser investigado e julgado pelos erros que cometeu”.

Jair Bolsonaro mentiu ao associar a Aids às vacinas contra a Covid, e isso foi incluído no relatório final da CPI. Qual a opinião do senhor sobre o que ele falou?
O presidente tem de medir aquilo que diz. São coisas que não se fala nem por brincadeira, nem por piada. Não se deve brincar com uma coisa tão séria. Bolsonaro tem muitos seguidores que acreditam nele. Nós, aqui, pedindo para que as pessoas se vacinem e o presidente ainda dá uma declaração na base do ouvir dizer, algo que não tem comprovação alguma. O cargo exige mais cautela, até porque ele é privilegiado com informações. Dados, que nós não temos, um presidente da República tem. Ele possui assessoria e teria os melhores quadros ao seu lado se quisesse. Isso é uma coisa preocupante, partindo de quem parte.

Quais são as principais contribuições da CPI e a maior conclusão a que os senhores chegaram?
A grande contribuição foi fazer o debate. A imprensa sofreu muito no passado até o início da CPI. Os jornalistas faziam matérias, falavam e ninguém dava importância. Na verdade, é que não tinha a repercussão porque o contraponto de Bolsonaro, naquela época, era muito mais forte. Ele conseguia desconstruir, utilizando argumentos fascistas, do tipo: “querem dinheiro, não vou dar dinheiro, são marginais, são vagabundos, são quadrúpedes, não entendem nada”. E é disso que o público de Bolsonaro gosta, para essas pessoas ele é uma linda canção de Natal. Nós conseguimos, com a imprensa, abrir o debate e fazer com que as denúncias sejam levadas a sério. Tanto é assim, que muitas se originaram em matérias feitas pela imprensa.

É preciso aprofundar algumas investigações?
Sem dúvidas. Há denúncias a serem investigadas, que não são esquecidas e que ainda estão em nossa pauta. A situação hoje é diferente. Assim como a imprensa, nós estávamos acuados. Antes, se a gente comentasse qualquer coisa contra a política do presidente, era criticado feito um jaraqui. Jornalistas, principalmente as mulheres, sofreram muito com isso.

O senhor disse que Bolsonaro usava argumentos fascistas. Ele não continua no mesmo tom?
Continua. Vai manter o tom fascista, mas sem credibilidade de antes. Continua e vai continuar. Ainda tem nazista no mundo. Existe o neozismo. Tem gente que segue acreditando que Adolf Hitler estava certo.

Dá para comparar Bolsonaro a outros líderes mundiais que teriam cometido atrocidades contra a humanidade?
Não chegaria a esse ponto. Até porque acho que existe um conteúdo maior nesses outros casos. E o presidente é superficial demais. Mas, se procurarmos esses líderes, veremos que eles possuíam grandes assessores, pessoas de qualidade, coisas que não temos aqui. Tinham fundamentos teóricos, tinham estudo. Acho, sim, que o presidente errou, e errou muito.

Disso decorre…
Ele tem de ser investigado e julgado pelos erros cometidos. Acho que ele apostou e não fez autocrítica. Bolsonaro é turrão. Ele age feito pais turrões que dizem: “meu filho tem de ser macho”. Bolsonaro é um turrão na Presidência do Brasil.

O que o faz turrão?
Não tem a sensibilidade nem a habilidade para mudar o modo de agir. Serve de exemplo o negacionismo. No Reino Unido, o primeiro-ministro Boris Johnson começou com negacionismo, foi criticado, contraiu Covid, mudou o conceito, e ponto final. Se Bolsonaro tivesse mudado, hoje ele seria herói nacional, as vacinas estariam em seu no colo. Então, poderia dizer: “perdemos vidas, mas eu fui à luta, nós conseguimos trazer vacinas e vacinamos”. Mas não. Depois que mais de 50% da população brasileira foi vacinada, ele diz que a vacina pode causar Aids. Está maluco? Estamos falando de cem milhões de pessoas que tomaram as duas doses da vacina. Bolsonaro não capitaliza. Pelo contrário: ele joga gasolina na fogueira.

Como assim?
Vou exemplificar. O filho quer uma bicicleta e o pai não lhe pode dar porque não tem dinheiro. Ele compra, então, para o filho, um carrinho de rolimã, e diz: “meu filho, estou lhe dando isso, porque é o que o papai pode dar agora. Mas, outro dia, dou a bicicleta”. Seis meses depois, esse pai o presenteia com a melhor bicicleta do mundo. E reforça: “papai não disse que ia dar? Está aqui”. Essa pessoa capitalizou, está vendo? Bolsonaro não capitalizou. O presidente e seus aliados ficam acanhados em falar da vacina. Eles se acanham. Já ouviu o discurso dos governistas? O acanhamento deles é notório, enquanto nós nos orgulhamos da vacina.

Qual a avaliação do senhor sobre a inclusão do governador do Amazonas, Wilson Lima, e de seu secretário estadual da Saúde na lista dos indiciados?
Isso foi um pedido do senador Eduardo Braga que o relator acolheu, e que não adiantaria debater. Não adiantava ficar debatendo isso, porque era muito pequeno em relação ao macro.

Como garantir que o relatório gere resultados práticos, assim que chegar à Procuradoria-Geral da República?
Com todos os fatos que estão narrados no relatório, é muito difícil alguém escrever que o seu conteúdo não é verdadeiro, dizer que aquilo não é verdade. Nós temos milhões de brasileiros que são testemunhas de tudo isso. Aqueles vídeos que o senador Randolfe Rodrigues exibiu na CPI demonstram claramente o que estou falando. São fatos.

Mas já chegaram muitos outros fatos às mãos do procurador-geral, Augusto Aras, e nada foi adiante. Ele tem a fama de engavetar tudo o que seja mais sensível ao governo.
Ele vai ter de escrever alguma coisa. Vamos ver o que o Augusto Aras escreve. A única coisa que ele não pode fazer é ficar calado, e não emitir sua opinião por escrito. Temos de ir também ao STF com notícia-crime, pedindo que a Corte exija um posicionamento do Ministério Público Federal. O que está escrito no relatório são fatos. Para engavetá-lo, o procurador vai ter de dizer: “olha, isso aqui que a CPI afirma não é verdade”.

E se ele disser isso?
Não dá para fazer prejulgamento agora, sem antes ele escrever. Uma vez escrito, temos uma gama de pessoas que contribuíram para fazer o relatório. Eu não tenho mais o que falar do relatório. Ele está aí. Não posso prejulgar Augusto Aras antes de ele fazer o seu julgamento. Espero que o relatório sirva de subsídio para que o Ministério Público Federal possa ser justo com seiscentos mil mortos. A partir de agora, eu não tenho mais para onde ir. Não tenho mais argumentos. Não tenho mais como dar respostas, porque agora não depende mais de mim. O que dependia de mim acabou com a votação do relatório.

Com o fim das investigações, qual a descoberta mais grave da CPI?
A questão de terem oferecido vacinas ao governo brasileiro, e o governo ter-se recusado a comprá-las. É como uma pessoa saber que existe um remédio na farmácia, que pode salvar a vida de alguém, e não comprar o remédio. Não é que não tinha na farmácia. Tinha e o governo não quis comprá-lo. Isso foi o que de mais grave brotou da CPI. Além, é claro, das coisas que foram potencializadas, como aglomerações propositais, falar em tratamento precoce, remédios com eficácia cientificamente não comprovada. Tudo isso é gravíssimo. Mas, para mim, o que é mais grave de tudo é saber que na esquina tem uma farmácia, que se alguém comprar o remédio pode salvar uma vida, e assim mesmo não fazê-lo. Independentemente de quem seja essa vida. Você nem conhece a pessoa, você não sabe sequer o nome da pessoa.

O senhor crê que o presidente ainda possa ser investigado pelos crimes de genocídio e por homicídio qualificado?
Com base no que tem no relatório, acho que sim. As organizações civis podem entrar com ações independentes. O nosso limite foi esse que está no relatório. As divergências em relação a indiciar o presidente pelo crime de genocídio eram claras. Não havia consenso. A preocupação era colocar essa tipificação e vê-la cair. Se isso ocorresse, todo o trabalho que tivemos ao longo dos seis últimos meses poderia ir por água abaixo. Se uma pessoa, sozinha, eventualmente fizer essa denúncia para uma instância competente e isso não for adiante, essa pessoa perderá a causa sozinha. Se a CPI perdesse, estaríamos perdendo também todo o trabalho de investigação que fizemos aqui.

Qual a mensagem que o Brasil passará ao o mundo quando as denúncias contra Bolsonaro chegarem aos tribunais internacionais?
Acho que a mensagem já está passada. Os principais meios de comunicação, em todo o mundo, já estão noticiando. Estão falando, espantados, sobre o que aconteceu aqui. Um País que possui 2,5% da população mundial, e que sofre, percentualmente, mais de 20% das mortes em todo do planeta, tem alguma coisa de errado.

Como Bolsonaro ficará gravado na história?
Que ele sirva de exemplo para os próximos presidentes de plantão. Bolsonaro vai ficar na história como omisso e divisionista. Ele dividiu o povo brasileiro durante a maior crise sanitária que o País e o mundo enfrentaram. Foi um governante errado em relação aos líderes mundiais. Nenhum teve esse tipo de comportamento. Estando perto da eleição, ele mantém o discurso negacionista. Bolsonaro não aprende. Dentro do G-20, do qual o Brasil faz parte, Bolsonaro é o único que é negacionista. Isso é surreal.