Há menos de um mês, o Brasil discutiu acaloradamente a história da menina capixaba de 10 anos que realizou um aborto legal, depois de ser estuprada por anos a fio e engravidar de um parente. Além das questões morais e legais que entraram em debate, os tristes números nacionais da violência sexual contra menores foram repisados.

O mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública, com dados de 2018, mostrou um recorde de 66 mil estupros. Nada menos que 53,6% foram cometidos contra meninas de até 13 anos. A proporção sobe para 71,8% quando a faixa etária é de até 17 anos. Das pessoas que deveriam dar atenção ao problema e poderiam inclusive oferecer soluções para ele, uma não estava prestando atenção ao barulho. Ou, se ouviu, fez pouco caso. Trata-se do presidente Jair Bolsonaro. Será que alguém se surpreende?

Na sua live desta quinta-feira, Bolsonaro recebeu uma menina de 10 anos para conversar. Trata-se de uma youtuber que havia já interagido com o presidente outras duas vezes. Diante dela, Bolsonaro sentiu-se à vontade para exibir o seu melhor humor de caserna. Fez piadas sobre gordos e sobre a maneira como descobriu o significado da palavra misoginia. Finalmente, fez um gracejo de duplo sentido com a garota. Enquanto ela explicava que começou a realizar entrevistas em vídeo aos seis anos, ele dava uma conotação sexual à expressão “começar cedo”, e ria o seu riso boçal. 

Estava quase escrevendo que Bolsonaro foi longe demais. Mas sempre é possível que ele vá um pouco além na live da próxima semana. De onde nada de bom se espera, nada de bom virá. 

Criticado, o presidente deve oferecer suas justificativas de sempre: é patrulhado; é vítima do politicamente correto; cadê o humor do brasileiro? Talvez diga que a própria menina não se ofendeu, foi só esse pessoal do mimimi. Ao que cabe responder: é verdade, presidente, as crianças quase nunca sabem reagir quando são violentadas. 

Bolsonaro jamais vai entender que seu cargo vem acompanhado de uma certa liturgia, de certas obrigações de polidez e civilidade. Não são bobagens. São requisitos para que o simbolismo de seu cargo seja preservado: alguém que representa uma instituição e representa um povo, e portanto é algo mais que a soma de suas manias e preferências pessoais. Bolsonaro só parece saborear a liturgia quando se trata de desfilar todo pimpão diante das Forças Armadas. Em todas as outras circunstâncias, ele prefere escolher o seu ridículo pessoal em vez da dignidade que a Presidência demanda.  

A tragédia é que além de desvalorizar a Presidência, Bolsonaro nesta quinta-feira conseguiu desprezar até mesmo o bom senso. Se não se incomoda em governar um país onde mais de cem crianças e adolescentes são estupradas todos os dias, que ao menos tivesse o cuidado de não usar uma menina de dez anos para fazer piadas de cunho sexual diante de uma audiência de milhares de marmanjos bolsonaristas. Trata-se de decência básica. 

Não falarei dos líderes religiosos que apoiam Bolsonaro. Algum deles repudiou a fala do presidente, levemente que seja? Ou será que estão esperando o fim desta sexta-feira, data limite para que ele vete ou sancione o perdão de uma dívida fiscal bilionária das igrejas? 

Falarei, no entanto, de Damares Alves. A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, ela mesma vítima de abuso sexual na infância, diz ter na defesa das crianças a sua maior bandeira. Nada, nem mesmo o trabalho à frente de um ministério sem verbas e depauperado, daria mais força a essa causa do que revoltar-se com o comportamento infame de Jair Bolsonaro, em vez de ser conivente com ele.