Uma das ideias mais perturbadoras que circulam por aí é que Deus é responsável pela eleição de governantes – de Jair Bolsonaro, em particular.

Não estou entre aqueles que acham que a religião deve ser banida dos debates públicos. Não creio ser realista, nem sequer necessário, pedir que as pessoas esqueçam sua identidade religiosa – uma fração de si mesmas que pode ser ínfima ou gigantesca – ao tratar de temas como aborto ou família. Isso não faz parte da receita democrática. São as políticas públicas que não podem fazer proselitismo da religião.

Tenho coceira, no entanto, quando alguém dá a entender que foi eleito não somente pela autoridade do voto, mas pela autoridade divina. Políticos e cidadãos comuns recorrem a esse argumento.

No caso de Bolsonaro, são muitos os exemplos. Ele mesmo repetiu mais de uma vez: “Tenho uma missão de Deus.”

A ministra Damares Alves faz eco ao presidente: “Deus levantou Bolsonaro para governar o Brasil.”

Recentemente, Marcelo Álvaro Antônio, horas antes de ser chutado do cargo de ministro do Turismo, mostrou devoção ao mestre com palavras semelhantes: “Deus levantou o presidente Bolsonaro para a bênção desta nação.”

Até os formandos da Polícia Federal decidiram chamar Bolsonaro de “instrumento de Deus” no começo deste mês.

A melhor frase de todas, pelo humor involuntário, é do pastor Silas Malafaia. Ele deu uma acochambrada em um versículo da Bíblia, Coríntios 1:27, que diz assim: “Mas o que é loucura no mundo, Deus o escolheu para confundir os sábios; o que é fraco no mundo, Deus o escolheu para confundir o que é forte.” Esta é a versão de Malafaia: “Deus escolheu as coisas loucas, escolheu as coisas fracas, escolheu as coisas desprezíveis, por isso ele escolheu você, Bolsonaro!” Dito dessa maneira, quase dá para acreditar.

Políticos que se creem duplamente eleitos para seus mandatos (pelo povo e por Deus) invariavelmente fazem pose de humildade. No entanto, representam casos tão extremos e evidentes de narcisismo, vaidade e arrogância que seria mais seguro atirá-los em um poço no deserto.

Quem acredita em Deus também acredita no diabo, certo? É curioso notar, porém, que a possibilidade da influência diabólica jamais seja mencionada pelos políticos religiosos. O demônio procurou tentar até mesmo Jesus. Mas não há notícia que tenha se arriscado com um político brasileiro. Suponho que sejam tão puros que o dito cujo não perde tempo batendo às suas portas.

Ganhará o meu respeito o político que um dia proclamar: “O diabo me tentou a procurar a reeleição. Mas eu resisti, por que sei que sou incompetente (ou ladrão, ou viciado em rachadinha). Aleluia.”

Em vez disso, vemos Bolsonaro afirmar: “Não sou o mais capacitado, mas Deus capacita os escolhidos.” E o quase ex-prefeito carioca, Marcelo Crivella: “O que Deus viu em mim para me dar o provilégio e a honra de servir a cidade do Rio num momento tão difícil? Isso foi algo que me deixou maravilhado.”

Se os políticos religiosos ao menos levassem em conta a possibilidade de serem títeres do diabo, muito desastre administrativo que existe por aí talvez fosse evitado.

Outra coisa inquietante nessa história de presidente, governador ou prefeito “escolhido” é a concepção de Deus que está por trás dela.

Por que os novos recrutas da PF consideram Bolsonaro um instrumento de Deus? Porque o presidente abriu concursos para a corporação, que vinham sendo adiados há tempos. O Deus dos recrutas, portanto, é um Deus que faz concursos.

De forma geral, o Deus que elege líderes políticos é mais o do Antigo que o do Novo Testamento. Esse é um deus que interage tão de perto com seu povo que chega a descer dos céus para comer coalhada com Abraão, debaixo do carvalho de Mambré. Não é por acaso que existe uma certa “judaização” das igrejas evangélicas no Brasil.

No Antigo Testamento se multiplicam os exemplos de reis que ocupam o trono por decisão divina, sejam do povo eleito ou de outros povos. Davi e Saul são ungidos por Deus. Mas também o faraó do Egito é mantido com vida depois do êxodo dos judeus por uma razão: Deus quer que ele dê testemunho do seu poder por toda a Terra, e manda Moisés lhe explicar isso.

A passagem do Novo Testamento mais citada sobre o tema está em Romanos 13: “Seja todo homem submisso às autoridades que exercem o poder, pois não há autoridade a não ser por Deus e as que existem são estabelecidas por ele.”

O texto, de fato, é bastante explícito: só se chega ao poder pela vontade de Deus. Mas isso não significa que o governante escolhido é bom, ou faz o bem. A Epístola aos Romanos foi escrita por Paulo justamente num momento em que as autoridades perseguiam os cristãos, que por isso perguntavam se era preciso obedecê-las. Ele disse que sim.

A verdade é que em nenhum lugar da Bíblia está escrito que Deus só escolhe governantes bons. Ele também pode escolher governantes terríveis, pois seus planos para os homens são desconhecidos. Esse é um detalhe que os políticos religiosos e seus cabos eleitorais não costumam mencionar.

Da minha parte, se eu rezasse, e a resposta às minhas preces fosse Jair Bolsonaro, eu começaria a me açoitar instantaneamente: seria a prova de um pecado muito grave.

Ou então passaria a temer que um outro tipo de deus esteja agindo por trás dos panos. Por exemplo, o demiurgo da religião gnóstica, que é malicioso e violento. Ou um dos Antigos Deuses imaginados pelo escritor H. P. Lovecraft, todos eles responsáveis por horrores cósmicos. Bolsonaro, filho de Cthulhu. É por aí.

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PS: Faço uma parada e volto no dia 4 de janeiro. Boas Festas a todos!