Desde 29 de julho, o presidente Jair Bolsonaro repete com insistência uma afirmação feita por ele ainda quando era candidato ao Palácio do Planalto, sempre sem provas: a de que as urnas eletrônicas usadas no Brasil não são confiáveis e foram usadas para fraudar as últimas eleições. Desta vez, porém, as informações falsas veiculadas na transmissão ao vivo pelas redes sociais do dia 29 tiveram consequências. Após a “live bomba” com ameaças golpistas, Bolsonaro enfrentou a mais dura reação, além de se tornar investigado no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

A polêmica do voto impresso e os ataques do presidente a magistrados mobilizaram o debate nos últimos dias e ofuscaram um momento que poderia ser considerado positivo para o governo. A semana nervosa viu a Câmara aprovar a privatização dos Correios, uma das principais pautas econômicas do Planalto; a vacinação contra a covid avançou no País e Bolsonaro divulgou detalhes sobre o novo Bolsa Família. Com valor maior, o programa se chamará agora Auxílio Brasil. Nenhum destes assuntos, porém, foi tão comentado quanto o voto impresso e as investidas do chefe do Executivo contra a democracia.

Embora tenha fracassado na tarefa de apresentar provas de fraude nas eleições, Bolsonaro conseguiu triplicar, na última live de julho, a média de visualizações em relação às transmissões ao vivo que faz toda quinta-feira. Foram 900.717 visualizações até o momento no canal oficial do presidente no YouTube, que registra, em média 258 mil a cada aparição desse tipo. No Facebook, a “live bomba” com retransmissão da TV Brasil, uma emissora pública, alcançou a marca de 1,2 milhão de visualizações, quando normalmente tem entre 250 mil e 400 mil.

Depois desse episódio, no qual Bolsonaro e um coronel da reserva apresentaram vídeos antigos com acusações inverídicas para sugerir, sem qualquer evidência, que houve adulteração nas urnas, em 2018 e 2014, as ameaças feitas pelo presidente contra as eleições ganharam ainda mais destaque. O TSE abriu inquérito administrativo contra Bolsonaro, que também foi incluído pelo Supremo na investigação das fake news. Empresários e intelectuais divulgaram manifesto a favor das eleições, assim como a cúpula do Ministério Público.

A proposta do voto impresso foi rejeitada na comissão especial da Câmara, mas na sexta-feira o presidente da Casa, Arthur Lira (Progressistas-AL), puxou a emenda para o plenário. A previsão é de que o texto seja votado até quarta-feira. Lira avisou Bolsonaro, porém, que, se o governo for novamente derrotado, e ele não respeitar a decisão, o Centrão deixará de ser aliado. Citou até mesmo um “botão amarelo” a ser acionado, sinal de que tem às mãos a possibilidade de abrir caminho para o impeachment.

Para o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (Progressistas-PR), o País precisa “se acostumar” ao comportamento do chefe do Executivo. “O presidente Bolsonaro é o presidente Bolsonaro. Precisamos nos acostumar com isso. Já é presidente há dois anos e meio, e todo mundo sabe o jeito dele. Ele reage. Está tudo dentro do que era esperado que fosse. Não consigo ver como isso estaria fora do padrão do comportamento dele”, disse Barros ao Estadão.

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

O deputado também minimizou a importância do manifesto de empresários em defesa das eleições e as respostas do Judiciário ao presidente. “Quantos empresários são? Isso tudo é narrativa. Todo mundo quer pegar uma carona cada vez que isso surge como assunto. Isso não é um movimento consolidado, organizado. São os que querem fazer média (…). No Judiciário também tem muita gente querendo fazer média”, afirmou Barros, alvo da CPI da Covid.

A resposta do líder do governo é contestada pelo cientista político e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Leonardo Avritzer. “É bom o Brasil não se acostumar ao ‘jeito Bolsonaro de ser’. O melhor é que Bolsonaro se acostume com a democracia no Brasil, e não que o Brasil se acostume com os seus arroubos autoritários”, afirmou Avritzer, um dos principais pesquisadores sobre democracia no País.

Na sua avaliação, o discurso de Bolsonaro é muito mais do que bravata. “A gente vive um processo de erosão das instituições democráticas. O presidente está questionando a segurança do voto e, com isso, erodindo a confiança de um conjunto grande da população acerca da lisura do processo eleitoral, que é um dos fundamentos principais, se não o principal, da democracia brasileira”, disse o professor. Para Avritzer, as declarações do presidente podem “ser o ponto de partida para um questionamento do resultado eleitoral de 2022, o que pode gerar muita turbulência política e até mesmo violência”.

Cálculo político

Trata-se de um comportamento calculado, no diagnóstico do cientista político Bruno Carazza. Há a percepção de que Bolsonaro age assim para “energizar” sua base à medida que se vê acuado por fatores como pandemia de covid e crise econômica, além de desafiado pela liderança do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas pesquisas de intenção de voto.

“Ao questionar as eleições e o Judiciário, Bolsonaro dá elementos para essa base de apoio, que não é desprezível, e soma hoje de 20 a 25% do eleitorado”, observou Carazza, professor do Ibmec e da Fundação Dom Cabral. Autor do livro Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro, ele observou que, ao decidir entregar a “alma do governo” ao Centrão, com a nomeação do senador Ciro Nogueira (Progressistas) para a Casa Civil, Bolsonaro sofreu cobranças de seus apoiadores. “Isso é mais um motivo para ele tensionar, desviar a atenção da base dessa composição que fez com o Centrão no Congresso”.

A reação às investidas de Bolsonaro contra a democracia têm se ampliado cada vez mais. “Não acho que bravatas levem a golpe. Eu acredito fielmente nas instituições e vamos continuar solidificando a democracia”, disse o ministro do STF Alexandre de Moraes, que conduz o inquérito das fake news.

Subprocuradores da República cobraram uma ação do procurador-geral, Augusto Aras, visto hoje como aliado de Bolsonaro. Um manifesto assinado por 29 subprocuradores diz que o chefe do Ministério Público Federal deve agir em “defesa do STF e do TSE, de seus integrantes e de suas decisões, não lhe sendo dado assistir passivamente aos estarrecedores ataques àquelas Cortes e a seus membros”.

Diante dos ataques de Bolsonaro, o presidente do Supremo, Luiz Fux, cancelou a reunião entre os Poderes e também cobrou de Aras uma posição enérgica. Ele manteve o silêncio. Bolsonaro não recuou. Ao contrário: chamou Barroso de “filho da p…” , anteontem, numa conversa com apoiadores, em Santa Catarina. O vídeo com o xingamento foi postado em suas redes sociais e apagado em seguida. “Querem decidir as coisas no tapetão”, disse ele ontem, após “motociata” em Florianópolis. Dessa forma, Bolsonaro vai pautando a agenda política do País. Até quando? “O botão amarelo continua apertado. Segue com a pressão do meu dedo. Estou atento, 24 horas atento”, avisou Lira. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias