É com traços precisos que a cartunista e chargista Laerte Coutinho critica diariamente as mazelas do País. Considerada uma das principais artistas brasileiras, começou a desenhar profissionalmente há cinqüenta anos, tendo colaborado com o jornal “O Pasquim”, semanário onde conheceu as pessoas a quem chama de mestres: Henfil e Ziraldo. Em 2010, assumiu-se como mulher transgênero. O processo de transição, segundo ela, foi natural, mas nem por isso menos assustador. “Comprava calcinhas em supermercados para que ninguém percebesse que elas eram para mim”, relembra. Prestes a completar 70 anos, a cartunista lamenta o fato de não poder mais usar saltos por causa da saúde dos joelhos e também por não poder ir ao salão de beleza durante a pandemia. Defensora de um humor que nem sempre faz rir, despreza profundamente as atitudes do atual governo. Se for preciso votará até em Luciano Huck em um provável segundo turno contra Bolsonaro. “A eleição de Bolsonaro é um desastre que se comprova a cada dia”, afirma em entrevista à ISTOÉ.

Como você está vendo o governo Bolsonaro? O presidente fornece bom material para os cartunistas?
Do ponto de vista de produção de humor, qualquer contexto vale. Não importa o governo. O que acontece é que Bolsonaro foge de qualquer qualificação. A eleição dele representa algo como bater de frente em um poste ou ver um trem cair de uma ponte. É um desastre comprovado a cada dia.

O cenário do Brasil é tão sombrio que nem sempre é possível rir de uma charge. Por que isso acontece?
O humor está para a risada assim como a música está para a dança. Quer dizer, posso dançar sem música. Se eu não estou rindo, não significa que aquilo não é humor. Nem toda piada, texto humorístico ou charge é produtora de risadas. O riso em si não deve ser o norte da coisa.

Uma das suas charges de maior repercussão foi uma em que você fez a clássica pergunta: “Por que sua esposa Michelle recebeu 89 mil de Fabrício Queiroz?”. Será que um dia teremos uma resposta?
Eu me desenhei, levantando a mão, como se estivesse na escola e fiz a pergunta. A graça está na relação com o fato, já que Bolsonaro tinha acabado de proibir que a pergunta fosse feita e se negado a respondê-la. As implicações jurídicas dessa indagação que estão no corpo de um inquérito não foram respondidas até agora. É um escândalo.

Bolsonaro é pior do que Trump?
Acredito que o que pesa na família Bolsonaro é muito mais grave do que tudo que Trump fez durante o mandato. O que o Bolsonaro está fazendo no Brasil é tornar o porte de armas algo natural, como acontece por lá. Ele quer criar facilidades para fornecer munição e armas para uma facção. Não é a população armada que ele quer. Ele quer a milícia armada. Ele quer ver armadas as pessoas ligadas a ele. O que pode acontecer aqui é bem mais grave do que está acontecendo nos EUA, com a invasão do Capitólio, por exemplo. Esse pessoal que apoiou a invasão é só uma pequena parte do movimento que apoia Trump. Não acredito que ele esteja terminando o mandato por baixo e muita coisa pode acontecer ainda. Ele está saindo de uma maneira perigosa. Para sair derrotado, precisaria sair preso.

Os EUA viraram uma República das Bananas?
Não gosto desse termo. É preconceituoso com países do Terceiro Mundo. Há uma má compreensão do que seja a democracia americana, que é uma democracia de meia pataca. É um país que só tem dois partidos que promovem uma eleição indireta. Eles não chegaram nem nas “Diretas Já”. A história americana precisa ser entendida com profundidade senão a gente acha que aquilo é o modelo. É uma plutocracia, um país que fez de tudo para preservar o poder do capital.

Você acha que Bolsonaro seguirá o roteiro de Trump caso perca em 2022? Vai acabar com o voto eletrônico?
Essa proposta do Bolsonaro e da extrema direita é para propiciar o controle do voto da população por parte de chefes locais, de milicianos e de máfias. Não tem outra utilidade. Não tem isso de “votei no fulano e meu voto não foi computado”. Isso é para o sujeito chegar no bairro dele e o chefe local pedir o comprovante. Não é compra de votos, é controle, uma máfia, como o PCC. Com o voto impresso, as quadrilhas terão controle absoluto das comunidades. É um retrocesso total.

O que explica a alta taxa de aprovação de Bolsonaro. Seria o apoio do “pobre de direita”?
Essa figura do “pobre de direita” é uma caricatura bem interessante. Tem um comediante, o Bemvindo Sequeira, que faz esse personagem. É engraçado, mas sociologicamente é mais complicado que isso. A formação política da população brasileira não é unitária e homogênea. De muitas formas, a mídia também promoveu uma construção político-social a partir de 2010. Uma senhora que conheço fechou com Lula no início de 2018. Ela disse que votaria nele ou em quem ele indicasse. Mas no final do ano ela votou no Bolsonaro. Ela acreditou que tudo que passava na televisão era verdade, que o PT tinha que pagar, que Lula tinha roubado muito. Ou seja, ela comprou o discurso da mídia. E não só da mídia tradicional, mas da submídia, que são as redes sociais usadas de maneira eficiente pela direita.

De onde viriam, então, seus índices de aprovação?
Acho que essa grande aprovação pode ser creditada ao auxílio emergencial, que de modo nenhum foi uma criação dele, pelo contrário, ele fez de tudo para destruir isso. Ele queria R$ 200 e a oposição pediu mais. Isso passou como uma realização do governo. Ele acabou faturando em cima disso. Some-se a isso a grande empatia que ele tem com parte da população por ser um animal e agradar pessoas desse tipo

Em quem você votaria, em Luciano Huck ou Bolsonaro?
Votaria no Huck, claro. O Bolsonaro é um fascista e o Huck, um oportunista. Acho que ética e politicamente deixa muito a desejar, mas entre Huck e Bolsonaro, prefiro Huck.

Qual a sua opinião sobre a ministra Damares Alves?
É uma fanática. Acho muito perigosa e de maneira nenhuma tola. Ela gosta de parecer tola, mas é muito engenhosa nos passos que dá. E não é à toa que está na posição em que está. A atuação dela e do Ministério no episódio criminoso da menina de dez anos que engravidou, e desejava interromper a gestação, é caso para os tribunais.
Como quem trabalha com humor profissionalmente, tem lidado com questões como o politicamente correto?
Não tem como fazer humor sem certo grau de agressividade. Não existe uma linguagem que não seja potencialmente agressiva. Mesmo nas formas mais brandas há a crítica, a possibilidade de agressão.

Bolsonaro têm ódio profundo da imprensa. Como você se sente em relação a isso?
Eu me sinto mal. Goebbels também odiava a imprensa. Há um registro de que Goebbels mencionou, uma vez, um chargista brasileiro, o Belmonte, que metia o pau no nazismo, como boa parte dos chargistas. Goebbels fala isso e diz que é sinônimo de imprensa decadente. Quando um presidente se sente à vontade para dizer baixarias contra a imprensa, é porque alguma coisa está muito errada.

Certa vez, você falou que tornar-se mulher seria mais aceitável do que ser homossexual. O que queria dizer?
Eu tinha um grande problema com a minha sexualidade. Comecei minha vida sexual com homens. Depois de quatro ou cinco anos, já na faculdade, decidi que aquilo era só uma fase e que a minha natureza era heterossexual. Daí, arrumei uma namorada e acabei casando, emendei com outro casamento e quando percebi que a homossexualidade não era só um acidente de percurso, e sim uma marca notável da minha personalidade, já tinham se passado trinta e poucos anos da minha vida e três casamentos que não tinham dado certo. Já tinha filhos e tudo. Aí eu decidi ceder e desbloquear. Foi aí que me encantei com a ideia da travestilidade que eu já cortejava de alguma forma. Mas a ideia de que as duas coisas têm uma conexão só veio mais tarde. Embora orientação sexual e identidade de gênero sejam coisas diferentes, elas também se articulam.

Como se sentiu ao sair pela primeira vez com roupas de mulher?
Nossa, fiquei muito nervosa. Coloquei uma sainha e fui andando até a padaria perto de casa. Não fui maquiada, fui só com meus brincos, uma camiseta e mini-saia. Fiquei tremendo de medo, pedi um pãozinho e voltei pra casa.

E como foi comprar calcinhas?
No começo comprava no supermercado, morria de medo que alguém descobrisse que era pra mim. Quando você é bem resolvida, qual o problema em ir ao mercado comprar calcinhas? Só deixou de ser um escândalo para mim quando eu decidi viver publicamente como mulher.

Seus pais já se acostumaram a te chamar de filha?
Às vezes. Eles ainda estão tentando lidar com isso, minha mãe de uma forma mais aberta. A minha mãe, quando falei que iria passar a me apresentar em público com roupas femininas, a primeira coisa que ela falou foi: “Ah, eu tenho um vestido aqui que talvez sirva em você”. Ela tem mais medo com as questões de segurança porque ela sabe o país em que a gente mora.

Anadolu Agency

Rumo aos 70 anos, como espera envelhecer?
Botox não quero. Já tive a pretensão de colocar peito, mas não coloquei. Não fiz tratamento hormonal. Estou com uma idade em que os efeitos colaterais são graves, como a osteoporose. Estou feliz como estou. Não quero padrões de beleza juvenil.

Você costuma dizer que namorar é uma atividade muito difícil para uma pessoa trans. É mesmo?
Nesse ponto a minha experiência é muito parecida com a maior parte das mulheres trans que conheço. É difícil ter um namorado ou um relacionamento consistente e duradouro. Ainda existe na sociedade brasileira uma forte resistência em considerar a pessoa trans como uma pessoa portadora de direitos.

Pretende casar de novo, busca um relacionamento?
Não estou pensando em relacionamentos. Estou aberta ao que vier. Já tive tantos relacionamentos que me sinto satisfeita com isso. Moro sozinha e estou bem assim. Já usei aplicativos como Tinder e Grindr, mas parei, começou a ficar meio estranho e também passei a temer pela minha segurança.

Há alguma obrigação em militar pela causa transgênero? Não dá para ser só a Laerte?
Não há obrigação, mas é algo que me agrada muito. Não sou uma ativista 100% do meu tempo, deixo muito a desejar em termos de participação, mas alguma militância gosto de fazer. Encontrei a militância na minha medida, nos grupos que frequento e nas reuniões que participo. É uma contingência, uma consequência das minhas posições. Eu me sinto recompensada quando alguém diz que se beneficiou disso de alguma forma. Acho bacana.