Preconceito? Imagina, claro que não! É o “mito” Messias em pessoa designando os nordestinos por aquilo que, no seu entender, eles merecem. Soco no estômago para acabar com a autoestima de cada um, mas no leque de discriminações trombeteadas pelo presidente representa apenas mais um impulso do sincericídio, que lhe é peculiar. Ele enxerga dessa maneira e ponto. “E daí, P…?”. No geral e no todo, o mandatário assume a intolerância e a hostilidade como as melhores formas de exercer a política. Pode parecer estranho? Equivocado? Uma loucura? Não no imbecilizante ecossistema bolsonarista. Ali, misoginia, racismo, xenofobia ou mesmo antissemitismo parecem normal, quase padrão no comportamento cafajeste da maioria. O mandatário em pessoa odeia pobre, negro, gay, mulheres, extratos sociais variados. E, curiosamente, acredita, ainda assim, reeleger-se justamente com o voto desse elenco. Contrassenso? No universo particularmente negacionista do capitão, não. Ali, as aberrações ditas e praticadas servem apenas de corolário do evangelho de pregações retrógradas a serem seguidas. Não é para menos que, animado com a possibilidade de “enganar aos trouxas” – só poderia estar pensando assim! –, partiu, dias atrás, rumo aos sertões do Norte e Nordeste, indo se aboletar nos currais dos votos de cabresto, para expor a decantada “habilidade populista”. Era o caradurismo de sempre, inaugurando obras não concluídas e prometendo mundos e fundos que não tem para entregar e que jamais irá de verdade fornecer. Nos cânticos de louvação bolsonarista, a mentira é parte essencial da homilia para converter fiéis. E como tática recorrente monta encenações folclóricas – que denotam os estereótipos de sempre – para parecer um local, homem do povo. Depois da farofada lá atrás, bolou o que chama de uma “jeguiata”, passeio de “jegue” em grupo (como ele é brilhante!), no qual planejou gastar até R$ 200 mil. Tá valendo! Com o trocado, dá para arregimentar mais de 200 cabeças dos burricos em uma caravana profética a repetir, digamos de modo mais pobretão, as “motociatas” encenadas no sul maravilha ao custo de milhões de reais.

Para os “cabeçudos”, a jeguiata tá de bom tamanho. Os nortistas e nordestinos não precisam de mais. Afinal, não passam de um bando de “paus de arara, aratacas”, como classifica. E antes que alguém entenda o relato do tratamento dado como eventual endosso a tamanho desatino, vale registrar que o signatário aqui também é nordestino, com muito orgulho, natural de Olinda-PE. Mas para Bolsonaro, a fatia de habitantes lá de cima do mapa do “Brasilsão Grande” serve apenas de massa de manobra para alcançar o intuito nas urnas. Nada mais, depois amarrota, joga fora e esquece o voto deles. Não lhe vale para coisíssima alguma as necessidades dessa gente, “bando de pés rapados”. O cala boca por um ano do Auxílio Emergencial generoso, com data para acabar, será suficiente – com certeza – para convencê-los de que o capitão é bonzinho, generoso, preocupado. Depois, pode largar mão. Voltar aos afazeres do funk em lanchas e regressar ali somente quatro anos depois, para renovar apoios. Aqueles nordestinos não terão serventia no interregno de eventual novo mandato.

Mas eis que o imprevisto atropela os planos. Na solene cerimônia de inauguração – pela milionésima vez entre presidentes nos últimos tempos – da esperada e tão desejada obra (retalhada em pedaços!) da Transposição do Rio São Francisco, Bolsonaro se deparou com o inconveniente. Tava tudo muito bom, chapéu estilo coco e prosa larga, dentro do script, quando o prefeito da cidade de Salgueiro (PE), onde ocorria o furdunço com rapapés ao mandatário, resolveu confrontá-lo levantando uma cobrança elementar: está faltando água, presidente, quando isso acaba? Danou-se! O pessoal também quer tudo, não é mesmo? O capitão picou a mula lá do seu Palácio para aquele fim de mundo setentrional, cortou fita inaugural e tudo e o sujeito ainda pede água? Como foi chatear o mandatário-candidato com detalhes? No tour sertanejo, Messias queria mesmo era parecer e ser visto como um Deus, o enviado da salvação, para a veneração de pobres e oprimidos. A “jeguiata” viria a calhar na paixão contemplativa do santificado. É bíblico, a lembrar o regresso triunfal de Jesus Cristo a Jerusalém sobre um jumento, saudado pelos transeuntes com ramos de palmeiras nas mãos, no episódio que ficou popularmente conhecido como o Domingo de Ramos. Bolsonaro foi durante a semana mesmo – não iria gastar seu dia de descanso com os “cabeças-chatas”, outra das alcunhas a qual recorreu na ocasião. Tal qual nas escrituras, o Messias do Planalto desejava ser o arauto da boa nova. De qual boa nova mesmo ele estaria falando? A do aumento da fome? Da miséria? Do recorde de desemprego, da inflação ou dos juros? Vendilhões do Templo! Não profanem a fé irrestrita e irrefreável dos seguidores, nem a palavra da redenção. O profeta ungido estava ali. O Messias encarnado que, por divindade e direito, pode atribuir a seus filhos de religião a alcunha que bem desejar. Sim, que venham a ele os paus de arara, cabeças-chatas, aratacas cabeçudos, desvalidos na condição e fisionomia, porque deles é o reino da reeleição. Contemplem o salvador de araque, malfeitor dos vulneráveis. E concedam a ele a prova de sua devoção.

Bolsonaro desdenha da inteligência desses “cabras da peste” interioranos. Não conhece as suas agruras, disfarçada ingenuidade e muitos menos as peculiaridades do senso de justiça apurado que carregam. Nessa toada, pode levar de contragolpe uma sova fragorosa. Que não se engane! O nordestino está curtido nas áridas promessas dos aventureiros ocasionais. Não é ludibriado facilmente. Basta ver a lapada de votos que no passado tirou de alguns descuidados pretendentes. Desprezar a sutil percepção da boa escolha por parte dessa gente é flertar, invariavelmente, com a derrota. O tucano Aécio Neves, lá atrás, que o diga. Mal apareceu para alguns poucos dedos de prosa e deixou o poste adversário, Dilma Rousseff, herdeira do demiurgo de Garanhuns, carregar em média 80% dos votos da região, enquanto colhia migalhas residuais de 3% a 6% naqueles estados. O mandatário parece ir pelo mesmo caminho. Não tem o menor traquejo para esconder a sua repulsa latente e óbvia. Não se emenda. Ele acredita que é tudo farinha do mesmo saco. Basta um agrado aqui, outro acolá, para calar a boca de carências seculares desse povo. De bucho cheio, eles viriam cordeirinhos e comeriam na sua mão. Vai pensando! O estilo odioso de alguém que imaginou cancelar o luto oficial do lendário sacerdote Padre Cícero – e ainda confundiu sua origem como sendo “lá de Pernambuco”, talvez por nunca ter visitado Crato, no Ceará, e por ignorância intelectual mesmo – é típico da visão tosca que guarda de uma gente tão sofrida.