Jair Bolsonaro é uma espécie de Seu Noronha, o pai depravado que protagoniza a trama da peça “Os Sete Gatinhos”, de Nelson Rodrigues. Noronha, um contínuo da Câmara de Deputados, morador do Grajaú, no Rio, é o vilão oculto da tragédia de uma família disfuncional. Seu pesadelo são as quatro filhas mais velhas entregues à prostituição para ajudar no orçamento doméstico e garantir o futuro da caçula Silene, que estuda em um colégio interno e, aparentemente, é a única que preserva a virgindade.

Descobre-se a certa altura que o responsável pelas agruras das garotas é alguém que chora com um olho só. E no final, com o perdão do spoiler, se confirma que esse elemento maldito não é ninguém mais ninguém menos do que o próprio Noronha. Ele é o verdadeiro pervertido, que leva todos para o buraco com suas maledicências cotidianas e sua grosseria permanente. Ele é a laranja podre que compromete o funcionamento de uma família que poderia ser normal, mas que vive perturbada por obsessões sexuais.

O caso de Seu Noronha serve como uma luva para Bolsonaro. Sua família é o Brasil, que ele insiste em levar para um lugar insondável e obscuro. Como o pai de “Os Sete Gatinhos”, Bolsonaro é a própria origem do problema que parece querer enfrentar. Diz combater o mal, mas pratica atrocidades continuamente. Apresenta-se como vítima, mas é o verdadeiro algoz dos brasileiros. Enquanto lamenta a devassidão da mulher Aracy, que rabisca pornografia no banheiro, Noronha atua como um cafetão oferecendo as próprias filhas por dinheiro para os deputados. É como Bolsonaro, que lança a população que diz proteger na fome e na miséria e esconde sua falta de escrúpulos. Bolsonaro e Noronha são homens frustrados que exercem o poder de maneira cruel e dissimulada e que são incapazes de demonstrar empatia por quem quer que seja.
Bolsonaro diz que nos últimos tempos tem chorado sozinho no banheiro por causa do peso de suas decisões. Não é a primeira vez que ele vem com essa conversa mole para parecer um homem sensível e se afastar da imagem impiedosa que seus atos só reforçam. Claro que seu choro é mentiroso.

O presidente pouco se importa com a morte de mais de 603 mil brasileiros pela Covid-19 e com o aumento vertiginoso da pobreza no País. Suas decisões ao longo da pandemia só aumentaram os problemas em vez de resolvê-los. Seu negócio é enganar, iludir, jogar nas costas dos outros a responsabilidade pelas desgraças que ele próprio causa. Como Noronha, Bolsonaro é um sujeito frio e calculista. E se chorar, com certeza é com um olho só porque sua emoção é falsa e corrompida.