O presidente deve viver mesmo em um planeta à parte do nosso. Por aqui, nas cercanias desse Brasil que ele não enxerga, faltam vacinas por absoluta imprudência e descaso de seu governo. Mas, para ele, importante mesmo são as armas. Colocar uma pistola, revólver ou mesmo rifle na mão de cada brasileiro para, quem sabe, resolver na bala os problemas cotidianos. É possível aceitar um mandatário tão deslocado da realidade e das prioridades que cercam seus governados? Qual o sentido de uma decisão tão estapafúrdia? Talvez a resposta seja encontrada em declarações passadas dele, nas quais expressa o claro objetivo – seu próprio, sem procuração de ninguém – de calibrar o povo para que esse use o armamento contra “inimigos políticos”. Sendo ainda mais direto, após prefeitos e governadores adotarem medidas restritivas de isolamento no ano passado, ele alegou: “se estivesse armado, (o povo) ia para a rua”. Recado explícito. O capitão sonha com milícias civis que atendam e deem suporte a seus desejos inconfessáveis de poder. Depois da invasão do Capitólio americano por simpatizantes de Trump, que não aceitavam o resultado das eleições, Bolsonaro foi capaz de apontar que aqui “poderá ser bem pior”. Eis a essência de sua gestão belicista. Ele ainda é capaz de dizer que o povo está “vibrando” com as novas e descabidas deliberações. Mede o ânimo geral com o metro miúdo de um fanático. Não entende definitivamente nada dos anseios gerais e aposta na necropolítica de quem dá gargalhadas e se diverte enquanto o País raspa a barreira de 250 mil mortos por Covid-19. Nessa última semana, em descanso nas aprazíveis praias de Santa Catarina, em meio às folias de Momo que ninguém mais teve, entre uma pescaria, mergulho ou passeio de Jet Ski, confraternizando sem máscara com populares, o presidente, atropelando claras atribuições parlamentares e em desalinho com a Constituição – para variar – botou de pé não apenas os quatro projetos de flexibilização do uso e porte, como acabou com a fiscalização que era feita pelo Exército sobre o arsenal bélico. Verdadeira licença para matar parece ter sido dada. Antes, o mesmo Bolsonaro já havia zerado impostos de importação a objetos de fogo. Nos dois anos em que comanda a gestão mais militarizada, desde os tempos da ditadura, publicou nada menos que 30 “atos normativos” para facilitar o uso, posse e porte de armamentos, cada vez mais pesados, incentivando dessa maneira o advento das milícias urbanas e a escalada da violência policial. É de um despropósito sem tamanho. Contrariando inclusive o plebiscito de 2005, que redundou no Estatuto do Desarmamento. Esse personagem inqualificável, do ponto de vista dos direitos humanos, caudilho estimulador da violência explícita, promoveu, até aqui, movimentos já espantosos de violência em todas as direções — inclusive contra os demais poderes. No plano do arsenal, ocorreu, em dois anos, um aumento expressivo de 65% na posse de revólveres e espingardas por civis, de todos os tamanhos, tipos e calibres. Agora, cada um pode comprar seis armas legalizadas, cerca de dois mil cartuchos. No caso de atiradores profissionais, serão permitidas 60 armas de fogo e, para caçadores, 30. E fica a pergunta: para que tamanho aparato? Trogloditas bolsonaristas não encontram limites para seus devaneios e apoiam naturalmente o capitão. Ao que tudo indica, o Messias estaria em busca de um exército particular – tal e qual a polícia secreta privada que disse manter tempos atrás. E com qual objetivo? Talvez imagine mesmo tomar ou assegurar o poder pela força em 2022, desconsiderando e desacreditando o voto. Oportunista da pior, Jair Messias Bolsonaro vai colocando o bloco de absurdos na rua, com o obsequioso silêncio do Legislativo e do Judiciário. Espanta a apatia diante de tamanha afronta. Poucos se dispuseram a reagir e a contestar. Algumas ONGs foram as primeiras a assumir o papel. O País encontra-se diante de um potencial agente golpista, cujas intenções são demonstradas inclusive quando fala em fraude na eleição que ele próprio ganhou. Para o bem de toda a Nação, o Estado de Direito precisa prevalecer e, nesse contexto, o Estatuto do Desarmamento em vigor necessita ser honrado e cumprido. Ou será que os senhores congressistas imaginam avalizar tamanha sandice? Alguém precisa deter essa escalada antes que seja tarde demais. O presidente não pode legislar sobre armas por decreto. Ponto pacífico. Atropelou atribuições, realizou uma manobra inconstitucional. Cabe aos congressistas a tarefa de repor a ordem natural das regras. Fato para deixar o País inteiro atento: Bolsonaro não está para brincadeira quando lança matreiramente tantos abusos. Ao flexibilizar os limites para compra e estoque de material bélico, Bolsonaro quis emplacar o tema que estava no topo de sua lista de desejos, parte fundamental da decantada “pauta de costumes”, que coloca de ponta-cabeça normas estimulando a delinquência da população. Do mesmo pacote já saíram ideias como a do fim dos radares móveis e do uso de cadeirinhas para bebês, a duplicação dos pontos nas carteiras de motoristas, alargando a margem de infrações, e até mesmo liberdade para motoqueiros fora de faixa. Não há um único movimento no sentido de aumento de fiscalização dessas arbitrariedades. Ao contrário. O “mito” já deixou claro que governa para satisfazer os próprios interesses. Desde sempre. Senta na cadeira do Planalto com a prepotência do “aqui mando eu”, e segue fazendo o que quer — deixando de realizar o que deve. Em um País que vai, pela primeira vez na história, paralisar um programa de vacinação por falta de imunizantes, o presidente demonstra diuturnamente que não entende e jamais entendeu a missão para a qual foi eleito. Após dominar o Congresso, se sentiu mais à vontade para colocar determinados assuntos – caros a ele – em discussão e votação. Em 2019 fez a primeira tentativa da empreitada dos atuais decretos, mas esbarrou na resistência do titular da Câmara, Rodrigo Maia. Agora acredita que será diferente. Na cruzada de expansão do arsenal nas mãos do povo, Bolsonaro praticamente dobrou o acervo existente antes de sua posse. Um levantamento da BBC mostrou que houve um incremento de 91% no registro de armas em 2020, comparado ao ano anterior, que já havia sido recorde. O atual pacote de alterações compreende um conjunto de medidas que, em última análise, mistura tudo e materializa o porte como algo usual. Com o argumento de desburocratizar procedimentos, Bolsonaro avança sobre o impensável.

Especialistas em segurança pública, das mais diversas vertentes, questionam as facilidades concedidas. A experiência mundial mostra que esse é o caminho inevitável para o crescimento da violência, dos homicídios e conflitos. O STF, que até aqui questionou algumas das medidas belicistas, precisa atuar de maneira mais firme em prol da segurança da coletividade. Na sociedade, avança uma indignação generalizada com as opções presidenciais. O governo não consegue implementar sequer um único plano de segurança pública razoável, com o devido apoio aos estados e às instituições policiais em escala nacional. O aumento de homicídios, mesmo em ano de grande isolamento social, como o passado, foi assustador. E a única resposta que o presidente oferece é a da liberação de armas. Milhões de crianças, sem condições sequer de estudar, com um orçamento que não teve nem ao menos 10% da meta cumprida, estão à espera de soluções práticas e efetivas para problemas realmente capitais. O mito dedica-se a decretos de distribuição de mais armas enquanto curte a vida adoidado em praias do litoral. Falta vergonha na cara do mandatário. Ele não consegue comprar vacinas, nem salvar vidas. Não aparelha as escolas, nem sequer os laboratórios de pesquisa. “Esquece” de fornecer oxigênio a cidades onde pessoas morrem asfixiadas. Mas as armas, essas, sim, são prioridade na guerra particular que trava pelo poder. Tirem-no dali o quanto antes. Ele está acabando com o que resta de civilidade por essas bandas.