Muitos se surpreenderam com a audácia do presidente Donald Trump ao tentar minar a democracia americana. Mas, atualmente, as cenas de uma “república de bananas” não são privilégio dos EUA. O mesmo processo já está em curso no Brasil, e de forma muito mais ameaçadora. Jair Bolsonaro, o único líder entre as grandes nações a apoiar o golpismo de Trump, avança passo a passo para fortalecer seu projeto autoritário de poder. Agora, deputados bolsonaristas, agindo em coordenação com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, de André Mendonça, pretendem aprovar no Congresso duas leis que reorganizam as forças policiais, dando autonomia às PMs e tirando poder dos governadores estaduais.

Não se trata de um projeto de Segurança Pública. Esse enorme retrocesso é mais um passo do presidente, talvez o mais ousado até o momento, visando a cooptação dos militares e das forças policiais. Pela proposta, as PMs também terão generais, seus comandantes não poderão ser demitidos pelos governadores e serão escolhidos pelos pares a partir de uma lista tríplice. Os policiais poderão retomar sua carreira nas corporações depois de exercerem mandatos parlamentares. É a politização dos quartéis, tão sonhada por Bolsonaro desde que foi afastado do Exército nos anos 1980. O Legislativo ficará ainda mais povoado por fardados, fenômeno que explodiu na era Bolsonaro, e eles poderão voltar a fazer política junto a suas tropas.

Dar autonomia às polícias militares significa estimular rebeliões, como aconteceu no Ceará. Isso também libera as corporações do controle externo democrático (Crédito:Dhavid Normando)

Essa aberração não tem paralelo nos países democráticos. Serve na prática para driblar o poder dos governadores democraticamente eleitos criando uma quarta força armada, que pode ser instrumentalizada. No desenho institucional, essas corporações passam a se reportar também ao Ministério da Justiça. Ou seja, na prática, ao presidente de plantão. Autônoma, sem prestar contas aos gestores regionais, essa força é o embrião de uma guarda para proteger autocratas. Não é preciso muita imaginação para perceber o perigo. Há uma longa história de uso repressivo das polícias na América Latina. Os carabineros chilenos sustentavam Pinochet e a Guarda Nacional Bolivariana ainda garante com mão de ferro o chavismo na Venezuela. Também há o risco de utilização dessas instituições para interesses escusos. O próprio Bolsonaro é um exemplo. Ao pedir demissão, o ex-ministro Sergio Moro denunciou que o presidente queria indicar pessoalmente o diretor da PF no Rio de Janeiro, onde tramitam processos de rachadinha contra dois de seus filhos. Pela suspeita de interferência política, o STF brecou a nomeação de Alexandre Ramagem, amigo do clã Bolsonaro, para a chefia da PF.

Milícias e politização

As atuais Polícias Militares foram aparelhadas na ditadura com uma visão política de coibir movimentos sociais. Na época, obedeciam, a rigor, aos comandantes militares, e não aos governadores civis. Na democratização, mantiveram o status de forças auxiliares do Exército. A integração com a Polícia Civil, que seria o próximo passo lógico com o objetivo de reforçar a inteligência de investigação e prevenção em detrimento do aparato repressivo, nunca caminhou a contento. Financiar a profissionalização é o que a pasta da Justiça e da Segurança Pública deveria estar fazendo, mas ela caminha exatamente no sentido contrário, regredindo para a militarização. Reforçar a autonomia das PMs nesse momento é sacramentar esse retrocesso. Não é só. As dezenas de greves e rebeliões das PMS nas últimas décadas aconteceram contra a autoridade civil democraticamente eleita, como se viu recentemente no Ceará, em uma rebelião insuflada por um bolsonarista. Dar autonomia a essas forças é um estímulo à sedição e liberaria as corporações do controle externo democrático. O presidente investe justamente nessa cultura.

As propostas em discussão também abrem flancos para o avanço da criminalidade nas corporações. PMs processados por corrupção ou outros crimes poderão ter progressão de patente. A contaminação das forças policiais pelo crime organizado já é uma realidade como se observa nas milícias que praticam crimes, assassinatos e controlam territórios. O notório Fabrício Queiroz, operador do esquema da rachadinha de Flávio Bolsonaro, segundo o MP do Rio, é suspeito de ligação com uma milícia. O ex-chefe de uma milícia especializada em extermínios, Adriano da Nóbrega, também fazia parte do esquema e foi condecorado pelo filho 01 na Assembleia Legislativa fluminense, a pedido do pai. Na contramão de recomendações de especialistas, Bolsonaro também quer armar a população. Liberou a importação de revólveres e pistolas e exigiu que o Exército contivesse o rastreamento das armas em poder da população — e elas com frequência acabam nas mãos de bandidos. Isso nada tem a ver com a profissionalização das polícias. Os atuais projetos em tramitação na Câmara, defendidos pela bancada da bala, têm caráter corporativista e ignoram a necessidade urgente de aperfeiçoar a Segurança Pública em todo o País, que sofre com falta de estrutura e agentes mal remunerados. Para diminuir os endêmicos índices de criminalidade, é necessário mais eficiência, coordenação e alinhamento com os valores democráticos da sociedade.

Bolsonaro tem um programa ostensivo de militarizar o País. A cúpula das Forças Armadas conseguiu com relativo sucesso recuperar o prestígio dos militares no período pós-democratização, mas o mandatário está conseguindo arrastá-los para seu projeto pessoal. Generais, inclusive da ativa, estão na alta cúpula do governo — com resultados medíocres, como se vê na área da Saúde. Mais de 4 mil fardados já ocupam diversas posições na administração pública. O MEC passou a priorizar a criação das escolas cívicas, enquanto negligenciava a educação pelo País. E, para driblar o alto comando que ainda teme a bolsonarização dos quartéis, o presidente tem investido ativamente nas baixas patentes. Participa metodicamente, em média uma vez por mês, de formaturas do Exército, Marinha e Aeronáutica, assim como das Polícias Militar, Federal e Rodoviária Federal. Ou seja, tenta influenciar ideologicamente as forças auxiliares e os futuros oficiais.

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SOB ATAQUE Urnas eletrônicas acabaram com as fraudes, mas Bolsonaro quer a volta do papel: “sem voto impresso, pode esquecer a eleição de 2022” (Crédito:Lucas Lacaz Ruiz)

Eleições na mira

Nos últimos dias, Bolsonaro deu um exemplo dessa ação mirando seu principal adversário para as eleições de 2022, o governador João Doria. Anunciou pelas redes um desconto de 20% de desconto para os policiais paulistas comprarem alimentos na Ceagesp-SP, entreposto federal na capital paulistana presidido por um coronel da reserva da PM. Procurou mais uma vez distribuir privilégios aos fardados — utilizando o dinheiro público, diga-se de passagem — enquanto atacou o rival. O local é o mesmo em que Bolsonaro reuniu uma multidão em dezembro, anunciando que nenhum “rato” iria privatizar a estatal (que estava no programa federal de desestatização). Não à toa Doria é um dos maiores críticos das propostas em tramitação no Congresso.

O candidato de Bolsonaro à presidência da Câmara, Arthur Lira, líder do Centrão, já disse que é favorável à nova norma que dá mais autonomia às PMs. Também promete colocar em votação outro projeto do presidente que visa diretamente as eleições de 2022. Disse que submeteria ao plenário, se eleito, a proposta de volta do voto impresso, uma das principais bandeiras de Bolsonaro para questionar a legitimidade do processo eleitoral. Sem nenhuma prova, como fez Trump nos EUA, Bolsonaro acusa as últimas eleições de fraude, mesmo que ele mesmo tenha sido o vencedor. “Sem voto impresso em 2022, pode esquecer a eleição”, declarou. O presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Luís Roberto Barroso, rebateu. Segundo ele, “a vida institucional não é um palanque e as pessoas devem ser responsáveis pelo que falam”. Mesmo assim, o presidente já semeia a dúvida sobre a próxima eleição, procurando deslegitimar um resultado que pode ser desfavorável. Exatamente como fez Trump.


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