Prestes a comemorar 80 anos no próximo dia 19 de março, o senador José Serra (PSDB-SP) é um dos raros nomes da política nacional a manter a coerência em seu discurso, desde quando começou a participar da vida pública, nos anos 1960. Ainda na faculdade de Engenharia Civil, atuou no movimento estudantil e ajudou a fundar a Ação Popular, uma organização política de esquerda. Depois do golpe militar de 1964 acabou se refugiando no Chile, onde casou e teve filhos. Ao voltar ao Brasil, 14 anos mais tarde, foi convidado pelo então governador de São Paulo, Franco Montoro, a assumir a Secretaria de Planejamento. Dali em diante foi eleito deputado constituinte e mais tarde senador, mas sequer assumiu, pois o então presidente Fernando Henrique Cardoso o levou para a pasta do Planejamento e depois para a Saúde. Em seguida, venceu o pleito para prefeito e governador de São Paulo e, por duas vezes, perdeu o sufrágio à Presidência da República, para Lula em 2002 e para Dilma em 2010. Em entrevista à ISTOÉ, Serra diz que o PSDB deve esquecer as divisões internas e respeitar o resultado das prévias que escolheram democraticamente o nome de João Doria para disputar a Presidência da República. Ele acusa, ainda, Bolsonaro de estar inviabilizando o teto de gastos e a estabilidade fiscal, motivado apenas pelo processo da reeleição.

Como o senhor avalia o papel do PSDB no cenário político atual? O partido pode recuperar o protagonismo que já teve no passado?
O partido tem experimentado mudanças e transformações que acabaram dividindo-o internamente. Mas não perdemos nossa essência de democratas, que é o que mais importa. Diferenças de pensamento são naturais e saudáveis dentro do processo democrático e, se bem conduzidas, engrandecem e fortalecem os debates e os projetos. O momento agora é de aparar qualquer aresta e focar em propostas que ajudem o Brasil a sair da crise, não só econômica, como sanitária e até mesmo de credibilidade internacional.

A eleição do governador de São Paulo, João Doria, nas prévias tucanas para disputar a presidência da República pode encerrar essa divisão?
O partido escolheu realizar prévias com quadros qualificados. A eleição do governador João Doria foi transparente e democrática. Agora, cabe a nós respeitarmos o resultado das urnas e nos unirmos em prol de discussões e projetos que podem ajudar o País a se recuperar dos impactos negativos de uma política econômica e fiscal precária, inflação e desemprego altos, no contexto de uma pandemia e crise sanitárias sem precedentes na história recente.

A sete meses das eleições, ainda dá tempo de consolidar um candidato único da terceira via?
Não só acredito nessa possibilidade, como acho fundamental que os partidos que estão fora dos extremos polarizados se unam em torno de uma alternativa viável para assumir a Presidência em 2023. É imperativo que tenhamos um nome comprometido politicamente com o equilíbrio fiscal. Atuo nesse campo desde a Constituinte de 1988 e posso dizer que, quando se trata de orçamento público, há sempre um potencial para desequilíbrio, por motivos de economia política. No caso brasileiro, contudo, há outros fatores associados, por exemplo, aos sistemas federativo e político-eleitoral que agravam o risco de desequilíbrios crônicos. E, nessa toada, corremos um grave risco de, em breve, encerrarmos mais uma década perdida em termos de crescimento econômico.

Os ex-presidentes Fernando Henrique e Lula sempre tiveram um bom relacionamento. Acha que a aproximação de Lula com o ex-governador Alckmin pode servir para aproximar os dois lados?
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso sempre tratou Lula com deferência e respeito. Mas, infelizmente, o contrário não foi exatamente o que podemos chamar de verdadeiro. Construir um governo sob uma bandeira que tratava a administração anterior como uma “herança maldita” não pode ser considerado algo absolutamente respeitoso, convenhamos. Tampouco produzir um falso dossiê sobre dona Ruth Cardoso, ex-primeira-dama, pode ser considerado um relacionamento de extremo respeito, não é mesmo? No entanto, nas democracias sólidas, é absolutamente natural que os líderes conversem e mantenham uma relação, independentemente de suas bandeiras e ideologias contrárias. E Fernando Henrique mantém essa máxima.

O senhor estranhou quando soube da possibilidade da chapa Lula-Alckmin para disputar a Presidência da República nas próximas eleições?
Minha opinião não é relevante sobre a decisão do Geraldo em se aliar a Lula.

Como avalia o cenário político hoje no Brasil? Desde que o senhor foi eleito senador muita coisa mudou no País. Quais mudanças mais lhe chamaram a atenção?
Assumi o mandato de senador em 2015 e esse tem sido um período bem turbulento para o Brasil, por diversas razões. A nação empobreceu de lá para cá e, o que já é um problema para qualquer país, é gravíssimo quando se trata do nosso Brasil, que tem uma economia cuja renda média é absolutamente desigual. Num período de sete anos, vimos uma presidente (Dilma Rousseff) perder seu mandato num processo de impeachment por problemas relativos à política fiscal-orçamentária; o esforço de ajuste baseado numa medida constitucional de longo prazo, que foi o teto de gastos; e, novamente, Bolsonaro está promovendo um grande afrouxamento de regras fiscais com fins eleitoreiros. Acho que está mais ou menos claro que regras fiscais não prescindem de governos e parlamentares comprometidos com alguma austeridade.

E na área política?
Nas demais áreas da política, os últimos anos acenderam alguns alertas. Durante um bom tempo, muito se falou sobre o amadurecimento institucional do País. Mas se formos olhar mais atentamente, parece que nem tanto assim: certas áreas políticas têm sido objeto de desmonte, enquanto outras estagnaram. Nosso sistema de Justiça tem se mostrado poroso a injunções políticas de ocasião, com todos os riscos que isso traz ao País e, principalmente, aos cidadãos. Mas também não quero e não posso ser leviano aqui, dizendo que nada foi feito durante todo esse período. À parte das minhas opiniões técnicas, houve reformas macro relevantes, como o teto de gastos e a Reforma da Previdência. Reformas micro, como os economistas costumam chamar, também aconteceram, como por exemplo, as iniciativas do governo Temer; ou o novo marco geral do setor ferroviário, com base em projeto de minha autoria, que foi sancionado em dezembro do ano passado com vetos pelo presidente Jair Bolsonaro.

O que mudou no sistema ferroviário?
O texto do novo marco geral do setor ferroviário teve origem no Projeto de Lei 3754/21 e foi aprovado pelo Congresso Nacional para permitir a construção de ferrovias por autorização, como ocorre na exploração de infraestrutura em setores como telecomunicações, energia elétrica e portuário. De acordo com o texto aprovado, também poderá ser autorizada a exploração de trechos não implantados, ociosos ou em processo de devolução ou desativação. A Lei das Ferrovias também facilitará a devolução de trechos que não sejam de interesse do concessionário para que possam ser repassados a terceiros interessados em obter autorização para exploração do serviço.

Se o partido indicar, o senhor aceita se candidatar a mais um mandato no Senado?
Sou um democrata, um estadista e estarei sempre a serviço do meu partido. Na última sexta, 25, o presidente do PSDB, Bruno Araújo, me propôs uma candidatura à Câmara Federal, no intuito de ampliar a bancada tucana naquela Casa. Não vejo problema algum nessa estratégia. Muito pelo contrário. Mas ainda estou avaliando todo o cenário para responder se aceito ou não.

Como o senhor avalia o seu mandato no Senado Federal? O senhor está de volta desde 2015, muito embora já tenha mais de 40 anos de vida pública, certo?
Como senador por São Paulo, tenho pautado o mandato com a mesma coerência, seriedade e compromisso que sempre tive nestes mais de 40 anos de vida pública. Meus projetos sempre visaram a melhoria das condições de vida da população brasileira. Projetos que têm como base a responsabilidade fiscal e o cuidado com o destino dos recursos públicos. Logicamente, também apresentei e apoiei propostas que trariam benefícios para a população paulista. Neste último ano, vou priorizar as áreas social, fiscal e ambiental. Não consigo enxergar desenvolvimento e progresso no Brasil sem uma atuação articulada entre as lideranças políticas em torno desses três temas. Inclusive com uma coordenação efetiva entre a União e os governos dos estados e municípios.

Embora o senhor seja economista, dedicou parte da carreira à Saúde, certo?
Nestes mais de sete anos de mandato como senador da República, apresentei, até o momento, 74 projetos. Desses, 29 foram aprovados no Senado e 13 convertidos em normas legais. Fui o senador que mais projetos aprovou na Casa e também o que mais teve proposições transformadas em normas legais. Além disso, tenho destinado quase toda a verba para emendas de saúde pública, que sempre foi um compromisso meu. De 2015 a agosto de 2021, destinei R$ 64,6 milhões em emendas para a saúde no estado de São Paulo.

Qual sua opinião a respeito da política externa do governo Jair Bolsonaro?
Nos últimos quatro anos, o Brasil rompeu pontes e esforços anteriores para o fortalecimento das suas relações exteriores e o presidente Jair Bolsonaro está constantemente dando sinais equivocados a respeito da política externa do País. Essa recente visita à Rússia foi o exemplo de uma agenda completamente inoportuna. A Rússia é um importante parceiro comercial do Brasil, mas este não foi o melhor momento para qualquer gesto que signifique complicar as relações do Brasil com outros parceiros igualmente importantes, como Estados Unidos e União Europeia. Assim como nas demais áreas, as relações internacionais brasileiras deverão ser recolocadas nos trilhos em 2023 e isso não será uma tarefa fácil.

Como o senhor define o senador José Serra?
Um estadista comprometido com o meu País, torcedor do Palmeiras e um avô bem coruja de quatro preciosidades.