O engenheiro e economista Luiz Carlos Mendonça de Barros, de 78 anos, é um observador arguto da realidade do País. Ex-presidente do BNDES e ex-ministro das Comunicações no governo de Fernando Henrique Cardoso, conhece os meandros do poder e tem grande capacidade de separar economia de política na sua análise conjuntural. Assim, embora nunca tenha visto um governo tão inepto politicamente, Mendonça consegue enxergar o andamento econômico com frieza e bons olhos. Para ele, apesar da situação política caótica, a economia está tendendo ao equilíbrio depois da recessão pandêmica. Há um movimento cíclico no Brasil associado aos ganhos com exportação de commodities agrícolas e minerais altamente valorizadas e ao avanço lento da vacinação em massa, condição indispensável para a retomada do crescimento. “Esse governo tem uma ideologia bruta, bronca, de sistemas políticos quase fascistas”, disse Mendonça de Barros à ISTOÉ. “Mas num país que tem uma democracia estabelecida, nós vamos testar esses limites. Acho muito difícil que ele consiga romper o cerco democrático em torno dele e espero que essa situação seja resolvida pela própria sociedade no ano que vem, quando haverá eleição.”

Estamos vivendo uma conjuntura caótica. O senhor vê problemas graves na economia?
Não estamos vivendo uma situação de caos na economia, que está acelerando. Hoje mesmo saiu o dado de confiança da indústria e foi positivo. A discussão hoje é se estamos vivendo o começo de um crescimento de longo prazo ou é só uma recuperação cíclica. Porque com a melhora da vacinação e o empuxo que a exportação de commodities está dando, a economia voltou a crescer. As bolsas estão quase na máxima, o dólar está quase na mínima e o dado de hoje de confiança, da FGV, é muito importante porque representa o espírito do empresário.

É a política econômica que leva a essa recuperação?
Primeiro é uma recuperação cíclica, que sempre acontece quando a economia tem uma queda como nós tivemos no PIB no ano passado. Mas tem a ver com a gestão correta em várias áreas. Por isso é importante separar. Se você olha para a economia depois da recessão criada pelas restrições de movimentação e de medo, você tem hoje um cenário mais organizado. Um dos dados que o mercado olha é a média móvel de vacinação, que saiu de um milhão e cem mil doses por dia e foi para um milhão e trezentos mil. Isso quer dizer que, apesar de todos os debates políticos, a vacinação continua acelerando.

A vacinação é o grande vetor econômico atual?
Os agentes econômicos são absolutamente pragmáticos em relação à economia. O que eles estão olhando agora é que, na margem, há uma melhora na gestão porque a vacina está começando a ficar disponível em número maior do que foi no passado. Em relação à gestão, evidentemente o governo teve uma performance muito ruim, mas isso fica para trás. O dado que eles olham é o aumento da vacinação. E tem um número mágico: se chegar a dois milhões de vacinas por dia, na média móvel de um mês, a pandemia estará quase sob controle.

Como o senhor vê o fechamento do comércio e as experiências de lockdown?
Em determinadas situações você tem que fazer o lockdown, como foi feito. Mas o mercado está olhando para a experiência de imunização na cidade de Serrana, no interior de São Paulo, que teve um resultado fantástico. O erro do governo foi não ter percebido que a vacinação é o único instrumento disponível para controlar a pandemia. Demoraram muito para perceber isso e, com essa demora, o fechamento foi inevitável. Isso explica um pouco essa distonia entre política e economia hoje. Se ficar olhando a CPI da Covid e uma série de outras atividades políticas, você pode dizer realmente que está um caos, mas quando se olha a economia em si, você vê várias iniciativas avançando.

Como assim?
Mesmo no Congresso as reformas estão andando, como a tributária, que propõe uma taxação sobre lucros e dividendos. Não é ideal, como nunca vai ser. E você tem a privatização da Eletrobras, que era uma dificuldade grande e acabou sendo vencida. É evidente que para esse crescimento cíclico se transformar numa coisa de mais longo prazo muita coisa precisa acontecer. Por uma razão simples, os analistas não acreditam que seja o crescimento atual se mantenha em longo prazo. O PIB neste ano deve crescer de 5,5% a 6%, pela maioria da previsões. Mas para o ano que vem ainda está muito magro, de 2%. Se você olhar as previsões do mercado, o que acontece é só um crescimento cíclico de curto prazo.

A inflação de hoje tem relação com a do passado?
Não, hoje não tem indexação de preços. O que você tem é um choque de preços por duas razões principais. Primeiro é que as commodities, tanto agrícolas como minerais, subiram de 30% a 40% de preço pela demanda da China. E o preço interno em reais acompanha o externo em dólares. Além disso, houve no ano passado uma desvalorização do real de mais de 35%. Quando se compõe as duas coisas, você explica porque tem preço subindo 40%, 50%, 60%. Mas não é uma inflação de falta de produto como no passado. É uma inflação que existe no mundo todo. E para enfrentar, é preciso subir os juros, o que está sendo feito, para manter a credibilidade da moeda.

E essa queda do dólar por que está acontecendo?
Porque nossas contas externas, que sempre foram deficitárias, não serão este ano. O Brasil, que sempre teve um déficit em conta corrente de algumas dezenas de bilhões de dólares, agora, pela primeira vez, segundo a previsão do Banco Central, terá um superávit de US$ 3 a 5 bilhões. Quer dizer o seguinte: o que faltava de dólar na balança comercial e de serviços em 2021 vai sobrar. Não tem porque, a não ser por um problema especulativo, sair correndo comprando dólar.

Como o senhor vê o trabalho do ministro Guedes?
Sou crítico do ministro Paulo Guedes dos primeiros dois anos do governo, principalmente do primeiro, porque ele colocou metas impossíveis de serem atingidas. Fui responsável pela privatização no primeiro mandato do Fernando Henrique e quando Guedes falou que iria fazer um trilhão de reais com a privatização, pensei: esse cara está brincando. E realmente não aconteceu nada. Além do que, ele tinha uma visão fiscalista da política econômica que não leva em consideração os problemas sociais e distribuição de renda. Isso ele mudou. Tanto que a brincadeira com o Guedes hoje é que ele virou um socialista. O que não é verdade. Já tive isso. Fui muito jovem para o governo, para ser diretor do BC e a visão que tinha naquela época é completamente diferente da que tive depois no governo Fernando Henrique. Aí você é obrigado a orientar a política econômica para a sociedade como um todo, não de acordo com conceitos ideológicos ou macroeconômicos.

Quando diz que ele quase virou um socialista, o senhor se refere ao auxílio-emergencial?
É isso aí, porque ele era contra. Mas você percebe, depois de dois ou três anos no governo, que sem essa ajuda a economia não anda, porque mais de um terço da sociedade tem uma renda muito baixa. O caso do Paulo Guedes mostra que quando você assume responsabilidade no governo, você tem que olhar para a sociedade como um todo.

É possível governar sem um plano de renda mínima?
Sem cuidar desses 30%, 40% da população, como estamos numa democracia, o apoio ao governo vai ser muito fraco. É uma política de Estado. Fui presidente do BNDES no governo Fernando Henrique quando ela foi implantada pela primeira vez. Ela é uma proposta do PT, do senador Eduardo Suplicy, e foi implantada com restrições pelo Fernando Henrique. Mas hoje ela faz parte do programa de qualquer presidente.

Uma discussão que surge quando se fala em ajuda emergencial é a do teto de gastos. Está sendo respeitado?
O teto de gastos no Brasil tem que existir porque a nossa Constituição é muito distributivista, então tudo bem. Mas há um limite de equilíbrio econômico do governo. O governo não pode ficar se endividando sem parar. O teto de gastos é uma forma de organizar um pouco os gastos totais, principalmente os sociais. E dentro desse teto você faz a redistribuição da maneira mais justa possível. Tem que ter um limite. E esse limite, tirando o ano passado em que reconhecidamente houve uma necessidade de gasto extra, está sendo respeitado.

A destruição ambiental tem afetado a economia. Os investidores internacionais se tocam com isso?
Hoje isso faz parte da economia mundial e a pressão vai aumentar. Você tem casos de bancos internacionais privados que já não emprestam aqui no Brasil para empresas que estão fora desse protocolo ambiental. Nós vamos ter que seguir as regras. A queda de Ricardo Salles tem muito a ver com isso. A pressão internacional tornou insuportável sua permanência no cargo. Até a China hoje tem um protocolo de controle ambiental.

Essa relação com a China tem sido ultrajada nos últimos dois anos. Isso pode nos prejudicar?
A China é realista em relação a isso e ela depende do Brasil hoje para alimentar seu povo. A China é pragmática. Não acredito que a relação bilateral será abalada.

As mudanças no alto escalão do governo podem significar alguma mudança política?
Temos um governo diferente do que a gente estava acostumado. E a gente está tendo dificuldade de entender. Mas Bolsonaro foi eleito e, em tese, tem liberdade de estabelecer os seus parâmetros. A sociedade está reagindo a isso. E ele vai encontrar um limite. Não quero entrar muito nessa discussão porque tenho bastante idade e vivi períodos complexos políticos no Brasil desde a ditadura. Mas é uma coisa que eu nunca tinha visto, nesse nível de radicalização. Só espero que realmente os canais de defesa da democracia – e são bastantes – cumpram a sua função de modular um pouco a parte mais radical do que ele acha que deva fazer.

O senhor acha que tem muita ideologia nesse governo?
Bolsonaro adota uma ideologia bruta, bronca e um sistema político quase fascista. Mas num país que tem uma democracia estabelecida, vamos testar esses limites. Acho muito difícil que ele consiga romper o cerco democrático e espero que isso seja resolvido pela sociedade no ano que vem, quando haverá eleição.

E a aproximação da eleição?
Não sei, é cedo ainda, tem muita coisa para acontecer. Agora, que vai ser uma eleição muito radicalizada, isso vai.

A situação econômica decidirá a eleição do próximo presidente?
Se o mercado estiver certo e o crescimento ficar em 2% no ano que vem, acho que a repercussão da situação econômica sobre a política vai ser pequena. Mas se chegar perto das eleições com crescimento de 3%, 3,5% aí o impacto vai ser importante.