O bolsonarismo foi castrado hoje na Câmara dos Deputados. Em uma sessão histórica, com votação acachapante, 364 parlamentares decidiram manter o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) na cadeia, por incitar a ruptura democrática no Brasil e a realização de ataques violentos ao STF e seus ministros.

Pregações como essa estão no centro do movimento político criado pelo presidente da República. O sonho do bolsonarismo é aniquilar adversários, rasgar a Constituição e reconstruir o país à sua própria imagem. A partir de hoje, contudo, o custo de animar a militância com esse tipo de delírio tornou-se alto demais. Certas palavras e ideias deixaram de ser aceitáveis na tribuna.

Cento e trinta deputados votaram pela libertação de Daniel Silveira. Alguns passaram pano para o colega: fingiram acreditar no discurso de arrependimento que ele fez em sua defesa e nas juras de que as palavras de ódio seriam abandonadas.

A maioria desse grupo, no entanto, recorreu a uma argumentação mais técnica. Disseram que a prisão decretada pelo STF foi feita com base em um conceito duvidoso de flagrante e, principalmente, que seria necessário preservar a imunidade dos parlamentares para expressar opiniões. Silveira deveria ser solto e julgado mais tarde no Comitê de Ética – para perder o mandato, segundo muitos fizeram questão de afirmar. Não são argumentos ilógicos nem desonestos. Não merecem ser desprezados. Mas não colaram.

Os deputados que optaram por ratificar a prisão de Daniel Silveira traçaram uma distinção definitiva entre opinião política e incitação ao crime. Só a primeira deve ser protegida. A segunda não está coberta pela imunidade parlamentar, porque é uma forma deturpada de liberdade de expressão.

Se essa distinção já existisse com clareza anos atrás, Bolsonaro não teria chegado aonde chegou. Sobrou para  Daniel Silveira ser o bode expiatório. E sobrou para o presidente descobrir um novo modo de fazer política e uma nova plataforma para buscar a reeleição em 2022.

O que houve de mais surpreendente no episódio, até aqui, foi a posição de Arthur Lira, o novo presidente da Câmara. Eleito com o apoio de Jair Bolsonaro, ele escolheu a dedo a relatora do caso, a deputada Magda Moffato (PL-GO), e trabalhou com ela no documento final, desfavorável a Silveira.

Na abertura da sessão ele disse que a imunidade parlamentar não poderia ser escudo para o radicalismo. Disse também que aquele deveria ser um ponto de inflexão na Câmara, em busca de um trato mais cordial entre os parlamentares. “A partir de hoje, a mesa será rigorosíssima com qualquer tipo de adjetivação no plenário desta casa”, afirmou Lira. Que seja a mais pura verdade.

Mas a novela ainda não acabou. Há certos mistérios no ar.

No fim de seu relatório, Magda Moffato exortou o Congresso a regulamentar as normas da Constituição usadas pelo STF para embasar a prisão de Silveira, e ainda o poder dos ministros da corte para decretar medidas contra parlamentares em decisões monocráticas.

Magda certamente não teve essas ideias sozinha. Por trás dela, há Lira. Pode ser que ele  esteja articulando alguma espécie de reação ao STF, depois de se curvar à decisão da corte em um primeiro momento. Ou não. Talvez a manobra contra o deputado que ousou insultar o STF seja uma tentativa de angariar simpatia no tribunal, onde o próprio Lira é réu por corrupção.

Também há um certo mistério em torno das relações entre Lira e Bolsonaro. O presidente não foi pego de surpresa, os dois conversaram antes da votação de hoje. Talvez esteja tudo bem entre eles. Mas a impressão, no momento, é que a raposa da Câmara engoliu o lobo.

 

PS: Bolsonaro dilmou. Como a “presidenta”, que ao menos não fingia ser liberal, ele interferiu diretamente na direção da Petrobras: demitiu o presidente da empresa e colocou em seu lugar um homem de confiança. Bolsonaro pode repetir mil vezes, como já vem fazendo, que não pretende controlar artificialmente os preços dos combustíveis. Ninguém vai acreditar, porque não se faz uma mudança desse tipo à toa. De fato, as ações da companhia despencaram na Bolsa. Alguém vai dizer: pode ser ruim para um punhado de investidores, mas é bom para a população. Está errado. A solução não se sustenta a longo prazo. Em algum momento, a Petrobras terá de adaptar seus preços aos do mercado internacional – ou então vai quebrar. Haveria alternativas mais inteligentes, que foram discutidas na greve dos caminhoneiros de 2018 e envolvem a criação de um fundo, cujo dinheiro seria usado para impedir que oscilações muito grandes de preço fossem repassadas para o consumidor final. Mas Bolsonaro não gosta de soluções inteligentes. Prefere balançar conforme o vento. Como um bonecão de posto de beira de estrada.