WANG YE / XINHUA / Xinhua via AFP

A perseguição e o desaparecimento de pessoas por causa de críticas a governos e a líderes autoritários fazem parte do jogo político em ambientes ditatoriais. O sumiço da tenista chinesa Peng Shuai, tudo indica, é um desses casos misteriosos que vem sendo instrumentalizado pelo Partido Comunista Chinês. Peng tem 35 anos e sua carreira esportiva colocou a China em evidência dentro do universo do tênis, jogo em que o país não tem histórico de conquistas relevantes. Ela chegou a ser a primeira do ranking mundial na modalidade de duplas. No entanto, o que chamou a atenção não só da comunidade esportiva mundial, mas também de lideranças públicas espalhadas pelo mundo foi sua vida particular, mais precisamente a relação íntima com Zang Gaoli, dirigente do Partido Comunista Chinês, que manteve a força relação sexuais com ela desde 2011.

O mundo ficou sabendo da angústia que tomava conta da tenista quando, em 2 de novembro, ela resolveu denunciar Gaoli por meio do Weibo, o Twitter chinês. Depois da revelação, Peng desapareceu subitamente por três semanas. O drama vivido pela tenista é inquestionável, mas o impacto político da revelação foi calculado. O período em que veio a público o escândalo sexual coincidiu com a Reunião do Comitê Central do partido, uma cúpula que abriu o caminho para Xi Jinping alcançar o poder absoluto no país, sendo colocado no mesmo patamar de Mao Tsé-Tung e Deng Xiaoping.

DESMASCARADO Zang Gaoli (acima), do PCC, tem perfil discreto, mas longe das câmaras é um abusador de mulheres. Thomas Bach, do COI, acalmou o mundo: a jogadora está bem (Crédito:COI)

Essa ascensão é algo que o ex-presidente Jiang Zemin (1993 -2003), discípulo de Deng Xiaoping, não aceita de forma alguma. Ele tem 95 anos de idade, mas ainda controla com mão de ferro o Grupo de Xangai, principal organização opositora a Xi Jinping. O braço direito de Zemin nessa luta política é, justamente, Zang Gaoli. “Tudo indica que foi uma estratégia programada”, afirma Leonardo Trevisan, professor de geoeconomia internacional da ESPM. Ele diz que o grupo de Xangai tenta há anos, sem sucesso, minimizar o poder de Xi Jinping. “Sob qualquer aspecto, o abuso sexual é reprovável, mas o episódio tem conotação política”, afirma.

Por se tratar de uma acusação direta a um importante dirigente político, e sendo a rede social vigiada e censurada de acordo com a vontade do Comitê Central, os posts dela poderiam ser apagados sem dificuldades. Mas não foi o que aconteceu. As mensagens ficaram no ar no momento em que a reunião para a unção de Xi Jinping não poderia sofrer ruídos. Só quando a reunião acabou as postagens foram apagadas. “O objetivo havia sido alcançado”, diz Trevisan. A denúncia teve repercussão mundial, manteve Gaoli calado, reduziu a capacidade crítica do Grupo de Xangai e serviu aos objetivos de Xi Jinping.

Ex-vice-primeiro-ministro da China entre 2013 e 2018, Gaoli nasceu em 1946 na província de Fujan, importante cidade portuária no sudeste do país. Ele carrega uma aparência sisuda, tem perfil discreto e em sua longa carreira política dentro do partido exerceu o controle em diversas províncias, além de figurar por cinco anos como membro aposentado do Comitê Central. Gaoli deixou o dia a dia da política em 2018, mas antes liderou o grupo de trabalho que organizou a preparação do país para as Olimpíadas de Inverno de Pequim. Isso também foi importante para que o Comitê Olímpico Internacional tivesse uma postura contemporizadora diante do sumiço de Peng Shuai. No domingo 21, o mistério chegou ao fim. Thomas Bach, presidente do COI, falou por videochamada com a tenista e confirmou que ela está bem e morando em Pequim. Porém, a jogadora disse que gostaria que “sua privacidade fosse respeitada nesse momento”. Gaoli estava calado e calado permaneceu. O enigma da desaparição foi desvendado, mas a utilização de dramas pessoais com intenção de manipulação política está longe de acabar.