SÍMBOLO Ali e Martin Luther King: carisma e ativismo (Crédito:Divulgação)

Em protesto contra o racismo, Martin Luther King promoveu uma greve de aluguéis em Chicago em 1966. Como represália, a polícia passou a despejar quem participava do movimento. Muhammad Ali chegou ao local enquanto uma família, sem poder fazer nada, assistia a sua casa ser esvaziada. Ele desceu do carro, tirou o casaco e o entregou a uma senhora para segurá-lo. Diante dos olhares surpresos dos policiais, o campeão mundial pegou uma cadeira que havia sido jogada na calçada e a levou de volta. Aos poucos, a multidão que estava nas ruas o imitou. Móvel por móvel, objeto por objeto. Em pouco tempo, a casa estava cheia de novo. Ali não disse nada: pegou o casaco de volta, entrou no carro e foi embora.

“Eu tinha que provar ao mundo que poderia ser um novo tipo de homem negro”
Muhammad Ali, pugilista

A biografia “Muhammad Ali: Uma Vida”, de Jonathan Eig, é a obra mais completa lançada até hoje sobre um dos maiores ídolos esportivos e sociais do século 20. Fruto de uma pesquisa inédita, com acesso a mais de 500 entrevistas e milhares de documentos do FBI e do governo americano, o livro é um retrato minucioso de suas glórias e derrotas. A vitória sobre Sonny Liston em Miami, em 1964, aos 22 anos, é um dos fatos mais interessantes. Além da primeira conquista do cinturão de campeão mundial dos pesos-pesados por Ali, a luta reuniu lideranças negras de diversas áreas. Na plateia estavam o ativista Malcolm X, figura central na conversão do pugilista ao islamismo, o cantor Sam Cooke e Jim Brown, astro do futebol americano. Após a luta, os quatro personagens se encontraram em um quarto de hotel. O que aconteceu ali ninguém sabe ao certo, mas a imaginação levou o roteirista Kemp Powers a criar “Uma Noite em Miami”, reconstrução ficcional dirigida por Regina King. Considerado um forte candidato ao Oscar, o filme está em cartaz na Amazon Prime. A produção também aborda uma das maiores polêmicas de sua vida, a mudança de identidade. Foi ali que ele declarou lealdade ao grupo radical Nação do Islã e anunciou seu novo nome: de Cassius Marcellus Clay, “um nome de escravos”, como ele dizia, queria ser chamado de “Muhammad Ali”, um “homem livre”.

PODER O pugilista no Zaire: multidões o seguiam pelas ruas gritando o seu nome (Crédito:Divulgação)

O livro também joga luz sobre os problemas que Ali acumulou ao longo da vida. O ponto mais baixo veio em 1967, quando ainda estava no auge da carreira esportiva. Convocado para lutar na Guerra do Vietnã, recusou-se a ir, alegando que “nenhum vietcongue nunca havia lhe chamado de negro”.

Foi condendo por deserção, teve o título mundial cassado e foi proibido de lutar profissionalmente. O homem mais carismático do mundo cairia em depressão.

A luta do século

Ali conseguiu retomar a carreira quatro anos mais tarde, mas os tempos já eram outros. Após algumas vitórias inexpressivas, perdeu para Joe Frazier em uma das lutas mais brutais da história do boxe. Veio reconquistar o prestígio – e o cinturão de campeão – em um dos capítulos mais bizarros do esporte: “a luta do século”, contra George Foreman, no Zaire. O evento foi organizado por Don King, empresário condenado por dois assassinatos, com o apoio do sanguinário ditador Mobutu, que havia acabado de dar um golpe de estado e se declarado presidente do país africano. O que era para ser uma viagem rápida transformou-se em uma verdadeira saga após Foreman se machucar no treino, o que atrasou a luta em duas semanas. O carisma fez de Ali um heroi, a ponto de ser seguido na rua por uma multidão entoando o mantra “Ali Boma Ye”, que significava “Ali, mate-o”. O alvo era Foreman, o vilão. Mais tarde o período foi eternizado no livro “A Luta”, de Norman Mailer, e em “Quando Éramos Reis”, documentário dirigido por Leon Gast e vencedor do Oscar em 1996.

Divulgação

Lançamento
“Muhammad Ali: Uma Vida” Jonathan Eig

Ed. Record
Preço:
R$ 142 | 770 págs.

Em uma de suas últimas entrevistas, Ali falou sobre o significado de sua vida. “Deus não me elogia porque venci muitas lutas, ele quer saber como tratamos e ajudamos uns aos outros”, afirmou. “Eu tinha que provar ao mundo que poderia ser um novo tipo de homem negro.” Essa consciência revela que, apesar de todo o seu humor e vaidade, ele sabia exatamente o poder de sua imagem. E ele foi, em todos os sentidos, um novo tipo de homem negro. Seu bisavô era um escravo; seu avô foi preso por matar a tiros um homem numa briga por uma moeda de 25 centavos. O pai era alcoolista e costumava espancar sua mãe. Essa era a família “Clay”, e por isso é possível imaginar por que Ali quis mudar o nome: era uma herança de Henry Clay, senador pelo estado do Kentucky e “proprietário” de John Henry Clay, bisavô de Ali.

Muhammad Ali foi um dos maiores atletas da história. Sua técnica de boxe combinava a enorme força física com a agilidade fora do comum para um homem de 1,91m. Tinha também uma grande capacidade de suportar os golpes dos adversários, o que teve uma consequência nefasta. Em 1984, aos 42 anos, foi diagnosticado com Parkinson após se aposentar. Sumiu da mídia e e afastou-se dos amigos. O mundo inteiro só voltaria a vê-lo em 1996, quando acendeu a pira olímpica nos Jogos de Atlanta. Teve dificuldade, suas mãos tremiam. A coragem de admitir a vulnerabilidade, porém, revelou toda a sua grandeza. Quem segurava a tocha era um ser humano comum, não mais o semi-deus que subia ao ringue nos anos 1960. Ali morreu em 2016, aos 74 anos, mas a imagem do rebelde imortal segue intacta – como o fogo olímpico, que nunca se apaga.

ENCONTRO ”Uma Noite em Miami”: diálogos fictícios de Ali, Malcolm X, Sam Cooke e Jim Brown (Crédito:Divulgação)

ENTREVISTA
Jonathan Eig, autor

“Ali era um símbolo de força”

Por que Muhammad Ali se tornou um ícone muito além do esporte?
Ele era um rebelde. Somos fascinados por quem aceita encarar o risco de desafiar as autoridades. Admiramos quem quebra as regras por um bem maior, como a liberdade religiosa ou a igualdade racial. Essas pessoas passam a ser
vistas como heróis.

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Como o fato de se recusar a lutar no Vietnã afetou sua carreira?
Ele ficou depressivo quando perdeu a licença e foi proibido de lutar. Ao mesmo tempo, foi um dos momentos mais importantes de sua vida, pois percebeu que sua popularidade tinha força para mudar o mundo. Quando os protestos se espalharam, ele viu que não estava sozinho.

Você o compara com Martin Luther King, Nelson Mandela e Malcolm X?
Esses líderes eram políticos em busca de mudanças. Muhammad Ali era um símbolo de força, como o punho fechado que representa o “black power”. Era inspiração pura.