Expoentes de espectros ideológicos antagônicos, Jair Bolsonaro e Joe Biden mantêm uma relação fria desde a vitória do democrata nas eleições — aliado de Donald Trump, o presidente brasileiro demorou um mês para parabenizar o homólogo pela vitória em 2020, jamais deixou de lado as teses conspiratórias sobre a lisura do processo norte-americano, reclama constantemente das cobranças em relação à proteção do meio ambiente e faz questão de alardear o apreço por Vladimir Putin, um dos principais adversários políticos de Biden. Não à toa, eles jamais protagonizaram um encontro para tratar de parcerias comerciais entre Brasil e Estados Unidos, tampouco para fortalecer as relações diplomáticas. Após um ano e meio de distanciamento, há uma brecha para uma trégua na próxima semana.

A convite de Biden, Bolsonaro embarcará rumo a Los Angeles para participar da Cúpula das Américas, na qual, a cada três anos, lideranças discutem problemas comuns aos países do continente. Para se certificar da presença do presidente brasileiro, o democrata valeu-se de dois emissários: o enviado especial Christopher Dodd e o encarregado de negócios da embaixada dos EUA no Brasil, Douglas Koneff. O evento ocorrerá entre segunda e sexta-feira e, nesse intervalo, Bolsonaro e Biden terão sua primeira reunião particular. Procurada, a Secretaria de Comunicação da Presidência não informou que dia, em específico, a conversa vai acontecer. “A agenda será divulgada em momento oportuno”, limitou-se a escrever.

Bolsonaro deve ter que explicar a Biden por que faz ameaças à democracia e não conserva a Amazônia

O gesto de Biden não foi em vão. Ao acenar a Bolsonaro, o democrata, que busca uma reaproximação com a América Latina após o efeito da era Trump, recebia informes sobre o esvaziamento do evento, já que Argentina, Bolívia, México e Honduras resolveram não participar por discordarem da exclusão das ditaduras de Venezuela, Nicarágua e Cuba. Além disso, o presidente norte-americano investe na melhoria da interlocução com o Brasil, que tem assento no Conselho de Segurança da ONU, em meio ao conflito entre Rússia e Ucrânia.

Amazônia

Ao escalar o time que o acompanhará nos EUA, Bolsonaro demonstra antever sobre quais pontos será pressionado. A relação completa da comitiva ainda não foi publicada no Diário Oficial da União. Nomes da Esplanada, porém, antecipam que o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, a integrará. Ele estará a postos para atenuar os desastrosos resultados da proteção à Amazônia e se posicionar, caso as nações presentes sejam instadas a assumir novas metas climáticas.

O titular do Ministério das Comunicações, Fabio Faria, também estará ao lado de Bolsonaro. A ele, caberá tratar do avanço de tecnologias como o 5G. Os EUA pregam boicotes a empresas que representem “um risco à segurança nacional” — em particular, aos fornecedores chineses de telecomunicações. Nesse ano, Faria chegou a processar o ex-ministro de Relações Exteriores Ernesto Araújo, que o acusou de “entregar o leilão do 5G para a China”.

Biden quer ter mais interlocução com o Brasil, que tem assento no Conselho de Segurança da ONU

Afora isso, a Cúpula terá, entre os assuntos prioritários, a defesa intransigente da democracia, assunto sobre o qual o presidente tem como conselheiro o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno. Integrantes do alto escalão não descartam que seja mencionado, no tête-à-tête de Biden e Bolsonaro, os ataques do brasileiro ao sistema eleitoral nacional e as ameaças de uma ruptura. Questionado publicamente sobre a possibilidade do brasileiro promover ataques à democracia nas eleições, Juan Gonzales, conselheiro para assuntos da América Latina do governo americano, esquivou-se e declarou que os EUA confiam nas instituições brasileiras. Apesar disso, recentemente, a subsecretária de Estado do país, Victoria Nuland, demonstrou preocupação e disse ter alertado representantes do governo brasileiro sobre o risco de interferência russa nas eleições brasileiras.

As diplomacias americana e brasileira veem o encontro como uma chance de reconstrução de pontes. A análise é compartilhada pelo presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, Pedro Vilela. “Será importante para discutir os interesses de Estado, deixando um pouco a questão político-ideológica de lado”, pontua. “Todos têm, no conceito da democracia, um valor inegociável. Mas há, obviamente, a questão do respeito aos limites de cada país. Então, a respeito de questões internas do Brasil, temos instituições sólidas aqui para cuidar e observar. Uma eventual preocupação dos EUA é legítima, mas a solução não virá de lá”, completa.

Para Bolsonaro, em particular, a viagem trata-se de uma oportunidade para reduzir a percepção sobre o isolamento diplomático do Brasil, sobretudo após o país ficar de fora da reunião da cúpula do G-7 pelo terceiro ano consecutivo, às vésperas das eleições, enquanto Lula, seu principal adversário político, transita bem na comunidade internacional. O presidente pode, ainda, avançar no diálogo sobre parcerias econômicas dignas de uma apresentação ao eleitorado. Resta saber se ele aproveitará a brecha ou se apegará às paixões ideológicas mais uma vez. Bolsonaro não começou bem — nesta semana, reclamou de ter sido ignorado por Biden no ano passado, em um evento do G-20. “Deve ser a idade”.